O culto moderno pelos esportes e dietas foi longe demais, de acordo com uma psicoterapeuta
Em suma, um transtorno alimentar é um problema que aparece em um contexto de distúrbios psicológicos. A verdade é que muitas pessoas acreditam que uma relação complicada com a comida aparece apenas em pessoas de caráter fraco ou “anormal”. Outra opinião popular é que os transtornos alimentares não têm nada a ver com pessoas que praticam esportes. Ambas estão completamente incorretas.
Primeiro, um transtorno alimentar não tem nada a ver com comida, mas com ansiedade e aversão pelo próprio corpo. Se você é uma pessoa ansiosa ou sente aversão ao olhar para seu próprio corpo, já está na hora de averiguar o que está acontecendo.
O Incrível.club conversou com a psicoterapeuta Anna Zubova, que nos explicou por que devemos refletir sobre esse assunto. Leia até o final deste post interessante, que é essencial para entender melhor as reações de sua mente e até mesmo ajudar outras pessoas.
As causas são geralmente invisíveis e “inocentes”
1. A genética
Embora os especialistas não concordem um com o outro na porcentagem exata, eles acreditam que exista uma forte relação entre a herança genética e o desenvolvimento desse distúrbio. Por exemplo, a professora Tracey Wade, da Universidade Flinders, concluiu que os genes determinam em 50% a probabilidade de desenvolver um distúrbio alimentar e depressão.
2. A família
- Você já ouviu seus parentes fazerem comentários relacionados a peso, biotipo ou hábitos alimentares desde a infância? São as chamadas erroneamente de “piadas afetuosas”, do tipo “minha elefantinha!” ou “meu gordinho”, até a cruel crítica “quem vai amar e querer namorar uma pessoa tão gorda?”. Se você é pai e percebeu que fala com seu filho dessa maneira, é importante que abandone esse hábito o mais rápido possível. Até mesmo se acreditar que “fala isso com amor e não de uma forma ofensiva” e achar que a criança também entende dessa maneira.
- Existem outras formas comprovadas de criar uma relação doentia com a comida: controle, punição ou incentivo em relação ao seu abuso: “Se você tirar uma nota boa na prova, iremos a uma pizzaria”, “se você chegar atrasado, não comerá a sobremesa”. Mais tarde, para os adultos que cresceram nestas condições, a comida deixa de ser um alimento e se torna uma sobreposição de emoções. É a partir disso que surge a incapacidade de controlar o hábito de comer demais sob estresse, por exemplo.
3. O mundo em que vivemos
Atualmente, não temos a mínima chance de escapar da propaganda dos biotipos ideais e da obsessão por exercícios e pela boa forma física. A cultura pela dieta não permite que as pessoas relaxem, beneficiando-se do nosso eterno descontentamento com nossa própria imagem. Nem todos os que seguem essas tendências têm distúrbios alimentares, mas as dietas se tornam um gatilho para que isso aconteça. Sendo assim, estima-se que um quarto das pessoas podem desenvolver alguns problemas em relação à comida.
4. As características individuais
Esta lista inclui as patologias congênitas do sistema nervoso e as características do trato gastrointestinal e do sistema endócrino. Embora seja verdade que esses tipos de desvios sejam raros.
Este exemplo serve apenas para lidar com a situação de forma mais simples e clara: cada caso de distúrbio alimentar é uma mistura complexa de causas raízes + traumas pessoais. O trauma sempre é muito particular, vai de cada um. As pessoas não são iguais. Por isso, podem viver a mesma experiência e cada uma irá encarar a situação de uma maneira completamente diferente. Sendo assim, a tentativa de tranquilizar alguém com as palavras “bem, eu passei pela mesma coisa mas estou bem”, não funcionará.
Os que estão na zona de risco são aqueles que estão muito acima do peso e os que estão muito abaixo... e, também, os que são muito atléticos
Abaixo estão alguns dos tipos de distúrbios alimentares. Alguns são evidentes e outros nem tanto. É possível utilizar estes exemplos para observar em si mesmo ou em seus entes queridos:
As pessoas “saudáveis” ficam indignadas: por acaso os anoréxicos não veem que seu corpo não está saudável? Porém, a questão aqui não é o que eles veem, mas o que sentem. As pessoas que têm esse distúrbio enlouquecem de pânico se engordarem mais que 100 gramas e não são capazes de suportar a aparência de seu próprio corpo. Além disso, a garantia de qualquer tipo de tratamento bem sucedido é a vontade de fazê-lo. A única maneira de se salvar é começar a comer, mas é exatamente isso que uma pessoa com esse distúrbio não quer fazer. É uma condição patológica. Por isso, a anorexia lidera o número de mortes não apenas entre os distúrbios alimentares, mas também entre todos os transtornos mentais.
- Comer em excesso, de forma compulsiva
A psique das pessoas procura desesperadamente uma maneira para relaxar: algumas pessoas, no final de um dia difícil, podem tomar “um copinho” de alguma bebida alcoólica; outros, têm o costume de “descarregar” sua raiva e frustrações nos entes queridos ou em pessoas mais próximas; e existem aqueles que procuram aliviar o estresse comendo algo gostoso. Dependendo da gravidade da situação, pode ser que a pessoa coma um pedaço de bolo, como pode ser que devore o bolo inteiro. É fácil adivinhar que as pessoas com compulsão alimentar muitas vezes têm excesso de peso. Após esse episódio de descontrole, elas sentem culpa, desconforto e remorso, suas emoções se acumulam e, como resultado, logo aparece uma outra crise.
Aqueles que estão longe de ter esse problema geralmente concluem “autoritariamente” que se trata de falta de força de vontade. Mas isso seria o mesmo que afirmar, seguindo os mesmos critérios, que uma fratura exposta pode ser curada com força de vontade. O tratamento correto para esse problema seria trabalhar todos os fatores que causam o distúrbio.
- Bulimia
A pessoa que está sofrendo com bulimia é extremamente cruel com seu corpo e com seus desejos alimentares. A base é a mesma: ódio e aversão por seu corpo. O descontente começa uma dieta (quanto mais severa, melhor, claro) e, quando a fome toma conta, a pessoa é dominada por uma vergonha frustrante e, o mais perigoso: sente que precisa fazer uma “limpeza”. Este “ritual de purificação” geralmente consiste em vômitos autoinduzidos, mas às vezes também são usados laxantes ou diuréticos. Tal como acontece com a dieta, essa limpeza deve ser necessariamente desagradável, só assim a terrível sensação de culpa e o desconforto irão embora.
- As pessoas fitness, os veganos e ativistas por um estilo de vida saudável
Você dificilmente esperava ver as pessoas de corpos ideais nessa lista de transtornos. Que tipo de distúrbio pode haver aqui? A pessoa cuida de seu corpo, faz dieta e pratica esportes. Um padrão moderno com excelência.
Vamos esclarecer de antemão: não há nada de errado em praticar esportes por prazer e selecionar os alimentos que deseja consumir, pensando em suas consequências para o corpo. Estamos falando aqui sobre aquelas pessoas que, para seguir as tendências modernas, dedicam-se de forma fanática ao culto da magreza, cuja vida literalmente perde sentido sem ela.
O preço deste estilo de vida supercorreto é a obsessão com a comida (o que comer, a que horas, com o quê, a quantidade de calorias...), a ansiedade constante, exercícios que esgotam a pessoa, que não podem ser pulados e que devem ser feitos de todas as formas, independentemente se o corpo está em condições ou não. Uma enorme quantidade de energia começa a ser investida em uma única faceta da vida, e o resto do mundo deve girar em torno disso.
Não é à toa que foi criado o conceito de “bulimia esportiva”: fazer o treino mais pesado e o mais difícil, conforme a culpa que a pessoa sente por ter se permitido comer algo incorreto (“estou muito gordo!”), ou pelo fato de seu corpo não ser perfeito o suficiente (“sou muito preguiçosa, mesmo!”).
Ao mesmo tempo, a grande maioria das pessoas que é obcecada com a religião da dieta não se dedica ao esporte de forma profissional. São pessoas comuns, que vivem em constante medo de que seus corpos não sejam perfeitos o suficiente, o que significa que elas mesmas, de acordo com as imposições da cultura moderna, serão estranhas nesse mundo. Pense nas pessoas mais bem sucedidas e famosas da atualidade e você verá quão insignificante é a porcentagem de “pessoas pouco esbeltas” entre elas. É comum hoje em dia a vontade de ter controle total sobre o corpo, o desejo de encaixá-lo em um padrão de beleza, independentemente da idade, constituição e indicadores individuais de saúde.
- Body Positivity (Positividade corporal)
Um aviso importante: estamos falando da forma negligente que a ideia original do Body Positivity adotou hoje. No quadro das propagandas inflexíveis sobre dietas, surgiram alguns protestos igualmente inflexíveis, que negam o esporte e o desejo geral de cuidar de si mesmo: “Sim, eu como qualquer coisa e meu peso é alto, mas amo meu corpo do jeito que é!”. Infelizmente, ignorar os problemas óbvios relacionados ao excesso de peso e à saúde, definitivamente, não tem nada a ver com o amor e com a preocupação com si próprio.
De toda esta lista, apenas os primeiros três pontos parecem realmente sérios. Mas, na realidade, o maior perigo está nos dois últimos, não por serem problemas mais graves, mas sim porque são classificados como “socialmente aprovados”. Uma pessoa com anorexia está claramente doente e precisa de ajuda, enquanto um “cara fitness” merece respeito e admiração. Mas, no fundo, ser fanático pelo estilo de vida saudável e ou seguir um estilo “Body Positive” sem se importar com as consequências que estar acima do peso pode causar são dois extremos da mesma rejeição de si mesmo. E mesmo que pareça que tudo gira constantemente em torno da comida, ela não tem absolutamente nada a ver com isso.
Como posso identificar se eu ou meus entes queridos não estamos bem?
Tente responder a estas perguntas de forma honesta:
- Alguma vez você já notou que come de forma descontrolada?
- O que você comeu gera sentimentos de vergonha, culpa ou tristeza? Você sente um desejo insistente de eliminar as calorias ingeridas?
- Você acha difícil lidar com os sentimentos que surgem sobre sua alimentação ou seu corpo?
- Você conta as calorias, conta o tempo exato para a próxima refeição, considera e pondera exatamente o que deve comer, etc., sem prescrições médicas especiais ou acompanhamento com um profissional da saúde?
- Preocupa-se demais com sua aparência, sente vontade constante de perder peso ou medo permanente de engordar?
- O nível da sua autoestima está diretamente relacionado ao seu peso e magreza?
Se você respondeu de forma positiva a pelo menos três dessas perguntas, é possível que esteja propenso a ter distúrbios alimentares. E, neste caso, recomendamos que entre em contato com um especialista para averiguar melhor essa situação.
Mas nem todos os especialistas são bons ou recomendados
- Procure um psicólogo especializado em transtornos alimentares.
- Esteja atento a um especialista que afirma que trabalha com problemas de peso e garante um resultado em X meses. Na melhor das hipóteses, trata-se de uma “propaganda enganosa”; na pior, esse profissional não ajudará e, pelo contrário, poderá agravar ainda mais o problema.
- Quando for a qualquer tipo de terapeuta, você deve e tem o direito de perguntar sobre seu supervisor (no caso, o psicoterapeuta que cuida do profissional que você procurou). Se for um especialista competente, com certeza ele terá um supervisor. Se não, você pode estar lidando com um charlatão ou uma pessoa autodidata.
Vamos resumir
Não há nada de anormal em querer perder peso ou ter boa aparência. O importante é não se criticar tanto e ficar obcecado, pensando que algo está errado com o seu corpo, mesmo que atualmente ele esteja mais “fofinho” ou mais magro do que o normal. Ao longo da vida, o corpo cresce, é influenciado por diversos hormônios, acumula e perde peso, adoece, envelhece. Ou seja: muda de forma constante. Uma atitude calma em relação aos processos naturais de nosso organismo, um trabalho corporal associado ao prazer, ao cuidado e à prevenção de doenças é o verdadeiro amor que devemos ter com nós mesmos. Não devemos sentir rejeição em relação à nossa aparência.