Médico forense conta sobre seu trabalho e apresenta vários conselhos para não terminar em sua mesa

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há 4 anos

O trabalho de um médico forense está tradicionalmente na lista das atividades mais assustadoras do mundo e a opinião geral sobre esse ofício é baseada em contos e estereótipos de cinema. Sabemos pouco sobre essa profissão porque não queremos nem pensar na morte. No entanto, todo mundo sabe que morrer é uma parte inexorável da existência.

O Incrível.club entrevistou um médico forense com 30 anos de experiência. Alexey Kupryushin foi chefe de um IML (Instituto Médico Legal) durante 20 anos. Atualmente, combina o trabalho de um médico forense e de um patologista, também sendo responsável por exames médicos forenses privados. Recentemente, Alexey criou um blog em que assegura que seu trabalho é “animado e interessante”. E não podemos estar mais de acordo com ele.

Sobre a escolha da profissão

  • A razão principal pela qual me transformei em um médico forense é meu interesse pela pesquisa. É como uma droga. Sem ela, a vida parece entediante. E qual é meu interesse? Ninguém sabe como funciona o organismo de uma pessoa em particular. O que há por trás de uma aparência, da pele e dos ossos? Somente um médico forense sabe. Muitas vezes, somente ele sabe encontrar a causa do falecimento de uma pessoa.
  • Às vezes, profissionais que não podem trabalhar como médicos em outras especialidades se transformam em médicos forenses. Por exemplo, eu mesmo nunca poderia trabalhar como cirurgião. Interferir em um corpo vivo para mim é inaceitável. O máximo que posso fazer para uma pessoa viva é dar uma injeção.
  • Os médicos forenses e os patologistas muitas vezes se confundem, mas não são a mesma coisa. Anatomia patológica e exame forense são diferentes especialidades, mas têm muito em comum. O objeto geral de estudo é um cadáver e ambos usam técnicas parecidas de autópsia. As diferenças estão somente em determinados detalhes. Têm muitas tarefas em comum, mas os objetivos são diferentes. Os patologistas contribuem com o processo terapêutico e diagnóstico. Os forenses contribuem com a Justiça.
  • É muito difícil encontrar maqueiros que queiram trabalhar no IML. Muitas pessoas não aguentam mais de um mês, apesar de a atividade oferecer um salário estável e bastante alto. Uma vez, não conseguíamos encontrar um maqueiro durante um mês inteiro. Minha esposa (uma médica patologista) ia no táxi conversando com o motorista. Pelo visto, tudo o que contou sobre seu trabalho era tão interessante que o taxista quis tentar. Trabalhar como maqueiro no IML não exigia formação médica, pois esses profissionais são capacitados no local de trabalho. O taxista veio e ficou. E segue trabalhando...

Sobre o trabalho diário

  • De 300 a 400 corpos por ano são avaliados, em média, por um médico forense em uma cidade de mais de um milhão de habitantes. Às vezes, são 500 autópsias. É muito: a taxa recomendada é de apenas 100. Não há médicos forenses em quantidade suficiente e os estudantes de medicina não se interessam por trabalhar no IML.
  • O especialista forense passa mais tempo no escritório do que na sala de autópsias. O estudo de um cadáver não é a única nem a mais completa maneira de obter informação sobre sua morte. Na minha prática, houve casos em que o estudo durou várias horas e sua análise e formulação de conclusões, alguns dias.
  • Um bom sentido de olfato dá ao médico forense algumas vantagens quando é necessário revelar com que foi envenenada uma pessoa. Durante o trabalho, sou capaz de identificar diferentes cheiros. Em caso de envenenamento com amônia, há um odor de ácido carbólico (fenol). Com o dicloroetano, é possível notar o cheiro de cogumelos secos. No caso de ácido cianídrico ou nitrobenzeno, o aroma é de amêndoa amarga. Com o álcool, o cheiro é de óleo fúsel. O cheiro de álcool butílico (butanol) lembra frutas. Existem ainda substâncias com cheiros muito particulares, como as que lembram o aroma de alho.
  • No primeiro IML em que atuei, durante muitos anos, trabalhou como assistente uma mulher chamada Anna, que já tinha uma certa idade quando comecei. Ela costumava usar um lenço e calçava botas de lã, tinha nariz em forma de gancho, as mãos enormes e me lembrava uma bruxa de contos de fadas. Nós, os jovens especialistas, muitas vezes a chamávamos para cheirar o cadáver. Ela aproximava seu nariz do corpo e, em voz baixa e rouca, pronunciava solenemente: “acetona” ou “líquido técnico”.
  • Muitas vezes, recebemos as visitas dos supersticiosos ou religiosos que vêm pedir a água com a qual foi lavado algum cadáver. Acredito que precisem disso para algum ritual. Os assistentes costumam dar a água da torneira, mesmo. Também solicitam cordas tiradas do pescoço de pessoas enforcadas, roupa de cama e objetos pessoais dos falecidos.
  • Às vezes, nosso trabalho pode ser mortal. Nunca se sabe o que pode ser encontrado durante um estudo. Já houve casos em que forenses, maqueiros e assistentes se infectaram com tuberculose. Há também o risco de outras doenças, como cólera e até de contaminação por antraz.

Sobre as mortes possíveis de serem evitadas

  • Acredito que a partir do ensino médio, devem ser ensinados alguns conceitos básicos da saúde humana. As pessoas entre 15 e 20 anos devem saber detectar quando estão saudáveis e quando não estão. Se há sintomas que nunca ocorreram antes, ou se dói algo e a dor não desaparece, deve-se procurar um médico. Em nenhum caso devemos suportar e esperar que passe sozinha. A não ser que você queira que digam: “Nossa, aguentou muito, mas não resistiu justamente por tentar ser forte”.
  • Na maioria das ocasiões, o assassino invisível “suave” é a pressão arterial alta. Muitos jovens acreditam que só os idiotas medem a própria pressão quando são jovens, que isso é coisa de velho. Eu diria o seguinte: “idiota é justamente quem não mede a pressão.” Se sua cabeça dói, você simplesmente toma um remédio, ou nem toma, já que a dor é fraca. E assim você dura alguns anos. Só que, ao longo do tempo, a elasticidade da parede arterial diminui e isso ocorre até mesmo no cérebro. E o próximo aumento da tensão leva à ruptura. O resultado é a hemorragia intracerebral e a morte.
  • Uma vez, estudei o cadáver de uma estudante. Ela morreu de repente, estando de pé junto à janela. Duas semanas antes do triste acontecimento, a moça sofreu uma infecção viral respiratória sem chegar a ficar de cama. Recuperou-se, mas seguia tendo alguns sintomas “insignificantes”, uma leve falta de fôlego e formigamento no peito. Esses sintomas a incomodaram, mas ela não procurou um médico, o que talvez tivesse salvado sua vida. A miocardite (inflamação do músculo cardíaco) foi uma complicação de sua infecção.
  • Trabalhando com uma fonte de perigo maior, por exemplo, com uma corrente elétrica, você sempre deve observar as precauções de segurança. As pessoas costumam abordar esse assunto com pouca seriedade.
  • No caso de incêndio, não busque dinheiro ou pertences valiosos; você terá a oportunidade de recuperar bens materiais depois. Salve-se e salve quem precisa de ajuda. Para ter uma grave queimadura, bastam apenas alguns instantes. Além disso, um incêndio libera rapidamente uma enorme quantidade de monóxido de carbono. Ele se torna tão abundante que, somente ao respirá-lo por um momento, uma pessoa perde a consciência, morre e acaba carbonizada.
  • praia e o álcool são uma combinação perigosa. Uma série de afogamentos ocorre por causa da embriaguez. A hipotermia pode agir de forma letal; os vasos dilatados da pele são reduzidos consideravelmente. O coração precisa bombear uma maior quantidade de sangue e não consegue realizar essa tarefa; então, o paciente perde a consciência. Uma vez retirado, pode recuperar a consciência rapidamente, mas, se continuar na água, os pulmões se enchem rapidamente de líquido e a pessoa acaba morrendo.
  • Várias vezes, precisei estudar os corpos dos motoristas que morreram por causa de uma colisão com um obstáculo por causa de um dano causado ao coração. No momento do impacto, o órgão estava cheio de sangue. Essa fase do coração é chamada de diástole; devido ao impacto hidrodinâmico, o sangue simplesmente arrebentou o coração. Se o cinto de segurança estivesse afivelado, o impacto não seria tão forte. Algumas costelas seriam fraturadas e nada mais.
  • Em alta velocidade, a sensação de estar protegido pelas peças metálicas dos automóveis é imaginária. Quando ocorre o impacto, a cabine se deforma como uma caixa de papelão quando pisada. Por isso, quando você dirige em uma velocidade extrema, pode ser inteligente imaginar que a carroceria é feita de papelão e, assim, tomar os cuidados necessários.
  • Durante uma discussão, as pessoas costumam dirigir seus socos à cabeça do rival. Em geral, as consequências não são muito graves, com exceção das contusões no rosto. Mas trabalho em um IML e só vejo mortes... qualquer pessoa que tenha dado um soco na cabeça de outra talvez não tenha pensado que sua atitude pudesse provocar hemorragia e edema cerebral. O mais provável é que nenhuma das duas pessoas envolvidas na briga imaginasse que esse desequilíbrio terminasse em morte.
  • Há, na TV, diversos programas médicos educativos e muitíssimas orientações de primeiros socorros. Toda a informação sobre esse tema está disponível na Internet e YouTube. Mas quem realmente saberia fazer corretamente uma massagem cardíaca ou reanimação cardiopulmonar (RCP) que fosse efetiva?

Como o trabalho mexe com nossa cabeça

  • A princípio, quando comecei a trabalhar como médico forense, não podia parar de imaginar o que havia dentro do corpo das pessoas. Vendo uma moça bonita no ônibus, imaginava como seriam seus órgãos internos. Depois de algum tempo, isso passou.
  • Minha esposa e eu nos conhecemos no IML. Naquele dia, houve um terrível acidente em uma estrada da cidade e trabalhei em modo de emergência. Ela era médica e precisou assistir a autópsia de seu paciente. E foi assim que nos conhecemos. Nosso primeiro Natal foi celebrado no IML, estando os dois em serviço. Logo, minha esposa se transformou em patologista e, é claro, muitas vezes conversamos em casa sobre nosso trabalho.
  • Uma vez, estava deitado no jardim olhando as nuvens no céu. De repente, percebi que elas lembravam alguma coisa. Então, lembrei: se você corta a parede do coração em paralelo com a superfície frontal ou posterior, a marca depois do infarto de miocárdio ficará parecida com aquela imagem que eu enxergava nas nuvens. No lugar do céu azul se vê um músculo do coração vermelho-marrom nas margens da área branquial. Chama-se cardioesclerose pós-infarto.

Sobre os estereótipos

  • No IML, há muitos contos sobre a ressuscitação de pessoas falecidas, mas presenciei somente dois desses casos. Em ambas ocasiões, tratava-se apenas de coma alcoólico. Os alcoolizados foram colocados em um refrigerador, onde mais tarde acordaram e, logo, recuperando a sobriedade, foram embora do IML com suas próprias pernas.
  • Não é verdade que somos pessoas difíceis de lidar. Não somos mais difíceis do que outros médicos.
  • Não há morte por velhice. Há morte de um idoso por alguma doença.
  • Mais de uma vez, precisei escutar a opinião de que nosso trabalho, comparado com o dos cirurgiões, não é tão importante e complicado: não importa o erro que se cometa, não prejudicará alguém. A pessoa que você está analisando, de fato, não será prejudicada, pois ela já está morta, mas você pode prejudicar outras pessoas. Por causa de seu laudo, podem prender um inocente ou não condenar um delinquente. O destino de muitas pessoas depende do nosso trabalho.
  • Provavelmente você já tenha ouvido falar sobre o fato de que os funcionários do IML costumam jantar na mesa de autópsia. Bom, isso não tem nada a ver com a realidade. Não conheço nem especialistas nem assistentes que façam isso, apesar de a mesa ser mais limpa que o normal: limpa-se cuidadosamente a cada exame com uma solução altamente desinfetante. Mas, em alguns momentos, precisei terminar de mastigar a comida na sala de autópsia quando outros médicos forenses me pediram uma consulta na hora do meu almoço. Às vezes, tivemos de celebrar as festas no IML, mas nunca na sala de autópsia.

Talvez, depois de ter lido este post, você tenha mudado sua opinião sobre o trabalho dos médicos forenses. Você gostaria de receber mais informação em primeira mão sobre outras profissões incomuns? Quais? Comente!

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