Trabalhei em um jardim de infância chinês e percebi que a diferença para os modelos ocidentais era como da água para o vinho
Olá! Meu nome é Anna, sou originalmente da Rússia, mas moro na província chinesa de Shanxi, e há 2 anos dou aula de inglês em um jardim de infância. Todos os dias, eu e meus 2 filhos, que também frequentam esse mesmo jardim de infância, temos que enfrentar as barreiras culturais e os costumes e hábitos mais estranhos possíveis.
Quero contar aos leitores do Incrível.club como os alunos da pré-escola vivem na China. Às vezes, é bastante difícil, principalmente por conta da disciplina puxada, que deixa os meninos querendo se esconder embaixo da cama. E no final do texto, você saberá por que meu filho mais novo foi repreendido quando disse “tchau” para seu pai.
Muitos jardins de infância funcionam com o sistema de “tudo incluso”
Os pais sempre querem dar a melhor vida para seus filhos, portanto, o jardim de infância privado é a escolha principal dos cidadãos da classe média dessa cidade chinesa. No entanto, não é um capricho barato: o valor anual dessa instituição de ensino custa em torno de 1,5 a 4 mil euros (6,8 a 18 mil reais) nas províncias, e de 4 a 6 mil euros (18 a 27 mil reais) nas grandes cidades.
Por esse valor, as crianças entram no programa de “tudo incluso”: 5 refeições por dia, transporte no ônibus escolar, uniforme, sapatos, mochila, roupa de cama e uma pilha de livros escolares das mais diversas cores, que chega ao tamanho da própria criança. Só é permitido entrar na pré-escola com um cartão especial e em horários estritamente específicos. Após as aulas, as crianças podem realizar atividades extracurriculares por um valor adicional, como montagens de LEGO, passeio de bicicleta, patins, basquete ou até experiências científicas.
Para garantir que seus filhos entrem em um bom jardim de infância, os pais estão prontos para fazer qualquer sacrifício. Em grandes cidades, houve casos que os residentes de algumas áreas ficaram em filas por dias esperando a abertura do jardim para o início do ano letivo. As pessoas simplesmente montaram tendas em frente ao prédio até as portas se abrirem para o início das inscrições.
A propósito, a avaliação de uma pré-escola não depende muito do seu tamanho ou da localização. Um jardim de infância particular pode ser relativamente pequeno, com uma área de recreação no telhado de um edifício alugado, e isso não influenciará nos valores. Nosso jardim, por exemplo, tem 60 alunos, 20 em cada sala. E em cada sala há normalmente 2-3 professores e uma babá.
A maioria dos educadores são mulheres de até 30 anos. O limite de idade das babás é de 45 anos. Isso é devido ao trabalho ser fisicamente pesado. Não adianta ir para o trabalho “arrumada” — de vestido e penteado. As professoras aqui mais parecem irmãs mais velhas: todas usam a mesma blusa ou camiseta, calças pretas e tênis. Os cabelos devem sempre estar presos, e unhas grandes podem até acarretar em multas.
Pela manhã, as crianças estudam chinês, inglês, matemática, música, aprendem a ler os caracteres e recitar poemas. Os professores conversam com os alunos em 2 línguas: chinês e inglês. As crianças passam por uma avaliação a cada mês e, caso ela não tenha absorvido suficientemente o material, o professor é multado.
Uma vez por mês, as crianças participam de atividades em grupo, desde a preparação de pratos nacionais de cozinha até aulas de cerâmica. Em cada temporada há um evento obrigatório com os pais: um passeio ao banco, ao correio, na fazenda, ao dentista, escalada na montanha, diversão no parque ou uma festa de espuma no próprio território do jardim de infância.
Ainda me lembro de como na minha infância, nos dias quentes de verão, a professora nos molhava com a mangueira do jardim. As crianças chinesas, por sua vez, têm pistolas de água e armas de espuma. Alguns pais chegam nos eventos com guarda-chuvas para tentar se proteger de todo o “caos” recreativo.
Há também os adeptos do entretenimento mais ativo: alguns pais já levaram bacias com água e criaram uma verdadeira “batalha aquática”. Os professores só tiveram tempo de tirar as crianças do meio do caminho.
As crianças podem passar o dia inteiro sem tirar o casaco de inverno ou os sapatos
O jardim de infância chinês permite que as crianças não tirem os sapatos de rua, tanto no inverno, como no verão. Durante o verão, as crianças usam tênis mais leves e, ao menos assim, elas não ficam com muito calor dentro da creche. Mas é bastante comum que as crianças não tirem nem os casacos de inverno dentro da sala de aula. O motivo é simples: muitos jardins de infância no sul da China não têm sistema de calefação (nós moramos no Norte e, por isso, o ambiente interno é quente mesmo durante o inverno).
Aqui eles também não têm o costume de usar tocas (mesmo que as temperaturas estejam negativas). Todas as crianças chinesas vão chegar com as orelhas vermelhas de tanto frio, mas ninguém parece estar preocupado em colocar tocas nas crianças. Meus filhos são os únicos que vão de toca para o jardim de infância durante o inverno.
Recentemente li um anúncio para os pais e entendi por que as crianças na China não costumam usar tocas de inverno.
“A temperatura do ar baixou. Não deixem de manter o corpo das crianças quente. Sigam o princípio de ‘3 quentes e 2 frios’. Devemos aquecer as costas, barriga e pés.
Ao manter as costas das crianças aquecidas nós as protegemos de gripe. 1/3 do calor corporal deve sair pela cabeça. Quando ela é sobreaquecida, portanto, a transferência de calor diminui. A criança pode ter tonturas ou até desmaios e, por isso, é importante manter a cabeça mais fria.
Coloque a mão na clavícula. Se ela estiver quente, então a criança está vestida da forma correta”.
O conceito de “menu infantil” não existe aqui
No jardim de infância, as crianças comem pratos chineses comuns, apenas com uma quantidade mínima de tempero, mas ainda assim bem temperados. Sucos também não são oferecidos. Um almoço normal é composto por sopa, prato de arroz ou macarrão e, às vezes, um pão para acompanhar. Nada mais.
Primeiro, eles devem comer o prato principal, e depois “beber” a sopa. Água é dada apenas antes de eles começarem o intervalo. Por isso, muitas crianças comem comidas apimentadas desde os 2 anos de idade, e a cada duas semanas camarões aparecem no menu.
Antes de cada refeição, as crianças têm de colocar as mãos na frente do peito e agradecer “em coro” pela comida.
Nos jardins de infância é dada muita atenção às tradições nacionais: durante o solstício de inverno, todos preparam pequenos pastéis recheados de carne, e só depois comem. E no feriado de início do outono, os professores cortam melancias para as crianças, mas fazem isso de tal forma que as fatias fiquem redondas para remeter ao Sol.
21 de março. Com a chegada da temporada do equinócio de primavera, todos têm o objetivo de encontrar o “equilíbrio interior”. O entretenimento mais comum nesse dia específico é o de tentar equilibrar ovos crus verticalmente de tal forma que eles não caiam. É preciso ter muita paciência e concentração para conseguir fazer isso.
Não fazem alguns testes médicos, mas não deixam de usar a lanterna nas escolas
Às vezes, acontece que os pais levam seus filhos com febre ou gripe para a pré-escola: a grande maioria trabalha e, às vezes, não tem com quem deixar seus filhos. Como resultado, tais instituições escolares fazem de tudo para evitar que micróbios se espalhem contaminando outras crianças. Na grande maioria dos jardins de infância há um profissional da saúde na entrada: as crianças são observadas antes de entrarem no território da escola. Eles examinam a garganta das crianças com uma lanterna para detectar se há alguma vermelhidão.
Além disso, os médicos se preocupam bastante com infecções intestinais e, por isso, penduram cartazes no jardim de infância informando como lavar devidamente as mãos e manter o corpo limpo em geral.
Aqui eles também não têm o costume de tomar muitas vacinas. Recentemente, eu tive de traduzir o cartão de vacinação dos meus filhos para o chinês e não sabia como seria traduzido “Prova de tuberculina”, que é o teste de diagnóstico para detectar se a pessoa está com tuberculose. Eles nem entenderam do que eu estava falando e procuraram informações na Internet. Depois descobri que eles simplesmente não fazem esse tipo de teste — eles tomam a vacina contra a tuberculose, mas não fazem o diagnóstico.
Camas são usadas tanto para dormir como para ensinar as regras de segurança
As crianças gostam de brincar, comer e dormir no mesmo quarto, que tem diversas camas pequenas espalhadas pelos cantos. A hora de dormir é de cerca de uma hora e meia. Alguns realmente dormem, outros ficam deitados descansando e nem sequer fazem barulho. A disciplina aqui é muito rígida e, por isso, as guerras de travesseiros e saltos na cama estão completamente fora de questão.
Em alguns jardins de infância, no final de cada semana, todas as roupas de cama, incluindo os colchões e travesseiros, são levadas para casa pelos pais, que devem lavar tudo e devolver depois à escola.
As camas têm ainda outro propósito curioso: elas são usadas durante as aulas sobre as regras de segurança.
Terremotos não são incomuns na China. Por essa razão, os jardins de infância e as escolas têm aulas obrigatórias nas quais as crianças são instruídas sobre como se comportar durante algum desastre natural, como no caso de tremores subterrâneos. Caso haja uma ameaça de colapso de algum edifício, é preciso sair rapidamente para a rua e cobrir a cabeça com as mãos. Se o terremoto for leve, você pode apenas se esconder embaixo de uma mesa ou da cama.
As crianças também aprendem a se proteger em casos de incêndios. Mas fazem isso de uma forma bem realística. Os professores queimam uma granada de fumaça: tudo fica coberto de fumaça, as crianças devem correr com toalhas molhadas cobrindo o rosto e alguns até choram de nervoso e medo. Após o “treinamento”, todos escutam uma palestra de um bombeiro e um professor. O exercício termina com todas as crianças se revezando para apagar o fogo dentro de um barril com um extintor.
O Dia das Crianças é comemorado em hotéis de luxo
Nas pré-escolas chinesas, o Dia das Crianças é celebrado tão grandiosamente como o Ano Novo. Crianças de 2 a 6 anos em roupas muito elegantes brilham nos salões de hotéis bastante caros.
Para se apresentarem nos palcos, as crianças precisam estar com uma maquiagem bem chamativa e bastante glitter no rosto. De acordo com a opinião dos pais, o evento é muito fofo e alegre. As meninas ganham cílios postiços, colocam sombra nos olhos, rímel, blush e pó. Os meninos, por sua vez, não costumam colocar os cílios postiços, mas fazem todo o resto.
Vale notar que não são todos os pais que “pintam” os meninos (aproximadamente 50%), mas 100% das meninas aparecem desse jeito.
Todos os alunos devem participar dos exercícios físicos da manhã
Eles não costumam fazer os exercícios “copiando” os movimentos dos professores, no estilo de “um-dois-três”. Às 10 da manhã, a música é ligada e, durante 20 minutos, as crianças e os educadores fazem a mesma dança. Todo dia é tocada a mesma música, e as crianças fazem os mesmos movimentos que já estão perfeitamente decorados.
Depois dos exercícios, as crianças não se juntam em pares, mas individualmente em blocos. Cada uma segurando a roupa da criança que está na frente e, assim, elas vão em direção às salas de aula. Os grupos mais avançados treinam a andar um atrás do outro sem segurar na roupa. Separar as crianças em pares de “menino-menina” é algo inaceitável aqui.
Os professores esperam total obediência das crianças
A educação pré-escolar aqui é conhecida como uma “vacinação contra o egoísmo infantil”. Na China, acredita-se que as crianças devem aprender a controlar suas vontades e adequá-las ao ritmo do coletivo. Para explicar o tratamento rígido, os professores costumam dizer que no ensino fundamental será ainda pior.
As crianças devem manter o silêncio nas salas de aula e seguir as normas de respeito e cortesia para com os outros. Não parece nada surreal, mas infringir uma regra sequer acarretará em severas punições. Alguns decidem gritar, outros podem dar tapas nas costas ou segurar pela mão. No ano passado, bateram com uma vareta nos dedos do meu filho de 5 anos porque a caligrafia dele estava “feia”.
Em geral, o tratamento “grosseiro” com as crianças é aceito tanto pelos diretores, como pelos pais. Recentemente, em uma reunião de pais, foi decidido unanimamente que a disciplina mais rígida é benéfica para o desenvolvimento da criança. O foco é o bom comportamento e o desempenho escolar, já que em breve eles vão entrar na escola.
Com essas regras tão severas, é comum que as crianças não demonstrem muito a própria criatividade. Quando eu sugiro nas minhas aulas que os alunos façam alguma escolha, em vez de realizar as tarefas dadas pelo modelo, eles não sabem o que fazer. Mas quando as crianças compreendem as regras, eles começam a fazer com mais prazer. É evidente que eles não estão acostumados a demonstrar muita individualidade.
Os pais também não são tratados de forma leve
O sistema pré-escolar chinês é frequentemente criticado pelo seu rigor e excesso de regulamentos. Mas os pais acreditam que os educadores do jardim de infância são profissionais qualificados, que não têm dependência emocional com as crianças e, por isso, eles são capazes de educar mais efetivamente do que a mãe ou o pai.
O mais interessante é que o tratamento mais grosseiro não é exclusivo para as crianças, mas também se aplica aos pais. É bastante comum que os pais assistam o desempenho de seus filhos somente através das cercas de proteção, não podendo se aproximar. Enquanto isso, os alunos sentam-se em cadeiras confortáveis para assistir a algum evento.
Recentemente, fomos a um parque assistir aos jogos esportivos de família, e eu fiquei surpresa com a falta de “cortesia” dada aos pais dos alunos. Eles foram forçados a participar e a realizar os comandos específicos dos treinadores. Quem errasse ou não seguisse as instruções, seria punido com uma vareta de plástico no bumbum.
Os pais da equipe perdedora eram forçados a fazer 20 flexões com as crianças nas costas. E ainda disseram que se algum adulto resolvesse recusar a punição, os professores que fariam as flexões. Os adultos sentiam que não tinham opção de escolha, pois poderiam ofender algum professor forçando-o a fazer flexões.
Bônus: história sobre as dificuldades linguísticas no jardim de infância chinês
Meu filho, Artem, quase foi repreendido por “quase” dizer um palavrão. Uma das professoras se aproximou de mim e começou a falar baixinho: “Eu escutei pela manhã que seu filho disse ‘boka’ (‘tchau’ em russo). O que isso significa?”
Aqui preciso explicar que a palavra para se despedir em russo é “poka” (“tchau”), mas os chineses não costumam diferenciar os sons “b” e “p” e, por isso, ela escutou a palavra de uma forma um pouco diferente.
“Baka” em japonês significa “idiota”. Os chineses escutam essa palavra com frequência nos animes. Mesmo agora, depois de ter explicado o significado para ela, eu ainda vejo os professores trocando olhares intrigados quando falamos entre si em russo.
Mal sabem eles o quão engraçado é o chinês para nós.
O que você achou do sistema de ensino infantil chinês? Diga-nos o que achou mais interessante ou incomum? Deixe sua opinião!