Tatuadora brasileira transforma as peles dos clientes em verdadeiras obras de arte

Gente
há 2 anos

Viver de arte autoral parece ser muito difícil e, às vezes, até impossível para a maior parte dos brasileiros. E quando se fala de tatuagem, o desafio parece triplicar. Mas, em alguns casos, o amor, o respeito, a dedicação e o trabalho duro falam mais alto e mostram que não só é possível viver de arte como também é possível realizar sonhos de infância, quebrar paradigmas e se orgulhar do próprio trabalho!

Nós, do Incrível.club, somos admiradores da criatividade e das infinitas possibilidades que a arte oferece, independentemente de como ela se apresenta. Por isso, conversamos com a tatuadora brasileira Gisele Goes, referência quando se trata de trabalho autoral. Confira!

Uma brincadeira de criança que virou profissão

Gisele conta que começou a desenhar ainda na infância, por necessidade, já que veio de família pobre e sua mãe não tinha dinheiro sobrando para comprar brinquedos caros. A artista fala que se divertia com o irmão, brincando de desenhar rostos em folhas de ofício. Eles faziam competição de maquiagem utilizando esses rostos e as pinturas sempre eram desenhadas com lápis de cor. “Lembro uma vez em que fui brincar de boneca com as meninas da minha rua, mas eu não tinha uma Barbie como elas, então, desenhei uma boneca de papelão, recortei e fiz várias roupas de papel. Foi o máximo! No fim, eu estava desenhando bonecas de papelão para todo mundo e as Barbies ficaram de lado naquele dia”, relembra.

Gisele não recorda ao certo quando decidiu que gostaria de trabalhar com desenho, mas lembra que foi cedo: “Com 15 anos eu procurava emprego escondido da minha mãe, porque trabalhava de garçonete numa lanchonete que ela tinha na época. Um belo dia achei vaga em uma gráfica e fui lá, mesmo sabendo que minha mãe poderia achar ruim. Querer fazer as coisas do meu jeito, me ajudou muito. Acredito que isso me faz mais criativa, porque acho que a criatividade mora ao lado da dificuldade ou de alguma limitação que possamos ter”.

O início de um sonho

Como sempre desenhou muito, Gisele estava pronta para as oportunidades que surgiam. Logo começou a trabalhar na indústria da moda, com ilustração têxtil: “Atuei nessa área por quase 20 anos. Aprendi muita coisa, por exemplo, quando se trabalha em uma empresa, você precisa fazer dois ou mais desenhos por dia, quer esteja bem ou não. Não existe essa coisa de ’só vou desenhar quando estiver inspirada’. Acho que isso me ajudou muito, porque, desde criança, eu estava sempre desenhando e pensando em coisas novas e consegui manter esse ritmo. Nessa indústria, o desenhista sempre está criando para alguém, seja uma estilista ou para o dono da empresa. Você sempre tem uma ou mais pessoas para agradar com a sua arte. Nunca é sobre o artista em si”, conta.

Outro ponto positivo em trabalhar nesse sistema foi entender o que as pessoas querem quando nem elas mesmas sabem explicar. Gisele conta que, na tatuagem, esse tipo de situação também é frequente. “Acho que essa experiência com moda influencia no modo como olho para os corpos das pessoas quando estou fazendo um projeto. Não considero apenas o pedaço de pele que eu vou tatuar. Para mim, não existe nada pior que o tatuador que não se importa com as bordas e os acabamentos do desenho, não considera a anatomia da pessoa e aplica a tatuagem sem se importar em como aquela arte vai ficar quando a pessoa estiver sem roupa ou usando roupas de estilos diferentes. Eu penso em tudo isso antes de tatuar”.

Os percalços no caminho

Mesmo estudando muito e desenhando com primor, a artista teve algumas dificuldades em seu caminho, que fizeram com que o sonho de viver de arte autoral fosse adiado. “A parte ruim em trabalhar com moda é que, para mim, foi sofrido demais conviver por tanto tempo com empresas que estão a todo momento copiando outros artistas. Isso sempre me incomodou profundamente e dava muito trabalho tentar convencer as pessoas que existe lei de direito autoral e que plágio é ilegal. Foi realmente exaustivo para mim. Até que não aguentei mais”.

Ela então tomou uma atitude que mudaria sua vida: abandonou a carreira na indústria têxtil e decidiu perseguir o sonho de trabalhar e se manter através da sua arte autoral: “Quando vamos iniciar uma nova carreira, é normal que a gente procure pessoas da área para tirar dúvidas. E foi o que eu fiz, fui conversar com tatuadores, mas acabou sendo um balde de água fria. Eles perguntavam quem eu achava que era para começar fazendo arte autoral. Falaram que eu passaria necessidade, que não daria certo, porque, segundo eles, meu desenho não era ’desenho de tatuagem’. Também enfrentei algumas dificuldades comuns às mulheres, como ser questionada o tempo todo. Já fiz uma cobertura em que a cliente não me autorizou a postar o resultado do trabalho porque o tatuador que fez o desenho que eu cobri me segue nas redes sociais, e ele iria ficar muito chateado com ela se soubesse da cobertura. Ou seja, eu resolvi algo que poucas pessoas no país teriam a capacidade técnica para resolver, mas em vez de eu ter uma foto para o meu portfólio, ela preferiu poupar um cara que acabou com o braço dela fazendo um desenho de maneira completamente equivocada”, relata.

Enfim, tatuadora

Depois de muitas dúvidas e incertezas, a maior parte delas plantadas por outras pessoas, Gisele refletiu sobre como queria viver, ponderou todos os conselhos que havia recebido, questionou a veracidade deles e decidiu tentar. Ela conta que, no início, precisou enfrentar vários paradigmas da profissão, desde o tipo de equipamento utilizado para tatuar até o estilo do desenho: “Muitos tatuadores dizem que não fazem cobertura, que não mexem na arte de fulano ou de ciclano. Eu nunca enxerguei só um pedaço de pele que carrega a arte ou o erro de alguém. Sempre vi pessoas, e por enxergá-las através das tatuagens que elas não gostavam, comecei a fazer as coberturas. Foi por generosidade. Ficava com pena de falar que não ajudaria e comecei a perceber que eu conseguia resolver muita coisa de uma forma que me agradava e também agradava quem me procurava. Nunca tive vergonha ou desmereci o trabalho de cobertura. Pelo contrário, sinto muito orgulho. Na cobertura também é possível fazer artes totalmente autorais. Além disso, é um resgate da autoestima das pessoas”.

Para aceitar esses trabalhos, no entanto, a artista faz uma avaliação e fornece um feedback sincero: “O que mais levo em consideração é se vai ficar bom mesmo e se vou conseguir fazer uma ótima entrega. Se eu não vejo uma boa solução para o caso, prefiro não mexer, mas é bem raro que isso aconteça. Chega muita coisa para fazer orçamento, em muitos casos o tatuador que fez algumas coisas que recebo jamais deveria estar com uma máquina na mão, usando pele de gente como tela”, desabafa.

Para artista, a maior dificuldade que enfrenta com o trabalho, hoje em dia, é quando o cliente quer cobrir uma tatuagem de 10 cm com outra completamente diferente de 11 cm: “As melhores coberturas acontecem quando a pessoa tem consciência que o desenho que ela tem já é grande, não é delicado e, principalmente, quando confia no meu trabalho e não vem presa numa ideia. Eu sou da opinião de que mais vale uma tatuagem perfeita de 20 cm do que uma de 10 que você odeia”.

A artista conta que as limitações que enfrenta no dia a dia aumentam a sua criatividade: “Todos os dias eu tenho que desenhar para as pessoas. É um desenho para cada uma! Meus clientes esperam ter o melhor do meu trabalho e eu não posso e não quero repetir desenhos e muito menos plagiar meus colegas, embora muitas vezes eles façam isso comigo. Eu sempre quero fazer as coisas do meu jeito, isso é uma espécie de brincadeira, de desafio para mim”.

O merecido reconhecimento

Depois de cinco anos se dedicando à tatuagem e de centenas de clientes atendidos no Brasil e no exterior, Gisele ainda se emociona com as histórias das pessoas que atende: “Atendi uma cliente em Portugal que estava tatuando a mãe dela, que tinha acabado de falecer. Eu tinha passado pelo mesmo com o meu padrasto. Fiquei muito emocionada naquele dia. Outra vez, pedi licença para uma cliente e fui ao banheiro. Quando voltei, ela estava chorando na frente do espelho e falando que tinha voltado a se amar. Haja coração! Várias clientes choram quando acabo a aplicação ou quando começam a visualizar a arte pronta. Tatuagem é coisa séria demais”.

Hoje, a artista se sente feliz e realizada com o trabalho que desenvolve: “Eu acho demais quando uma pessoa escolhe levar a minha arte na própria pele para o resto da vida. Não tenho palavras para descrever a alegria e a responsabilidade que isso representa para mim. Já fui e ainda sou ridicularizada por alguns grupos de tatuadores. Mas tenho uma agenda que fecha em segundos, ganho bem e posso bater no peito para dizer que desde o primeiro dia que comecei, nunca fiz uma cópia. Eu sou muito realizada! Ver as pessoas saindo daqui felizes com o que estão carregando no corpo, é sensacional! Além disso, eu conheço muitas pessoas legais. Eu sempre acreditei no poder da arte e sempre confiei que ela me levaria longe, mas não imaginei que seria assim e que seria tão longe”, comenta.

Vivendo o sonho

Apesar de já ter uma carreira consolidada, Gisele continua estudando e se aprimorando: “Não acredito em dom porque parece algo que a pessoa nasce sabendo fazer. No início, meus desenhos não eram bons, eles ficaram bons com muito estudo e com a prática. Mas eu acho que tem algo por trás, um feeling, que, para mim, pode ser traduzido como ’gostar de’, porque quando gostamos, nos dedicamos e acredito que somente a prática nos torna especialistas em algo. Também acredito que precisamos entender, urgentemente, que ’estilo próprio’ depende das fases da vida de um artista. Às vezes, parece que estilo próprio é um lugar onde a gente chega, mas penso que os artistas podem ter vários estilos na vida e por mais que sejam sutis as mudanças, elas sempre estão acontecendo”.

Ela ainda dá alguns conselhos: “Para quem está começando a tatuar: entenda que tatuador deve ser, antes de qualquer coisa, um artista. O ato de tatuar define apenas a técnica de aplicação e a superfície utilizada. Precisa saber desenhar, produzir, testar materiais diferentes, outras superfícies, conhecer e utilizar técnicas diferentes. Existem muitas possibilidades. Outra coisa, é necessário que se consuma arte para abastecer o cérebro e o HD com referências. E o mais importante, descubra qual é a tua habilidade! A minha sempre foi trabalhar com linhas. Por isso sou tão contra um artista tentar copiar o outro, são habilidades e gostos diferentes! Quanto mais você tenta copiar alguém, mais longe estará do teu estilo e da tua habilidade. Já para quem está buscando um artista, acho que, na verdade, é simples: preste atenção no trabalho, no estilo, dê zoom nas fotos, perceba os detalhes e analise com cuidado. Só depois faça a escolha”, finaliza.

Você tem tatuagens? Quais são as que você mais gosta? Já se arrependeu de alguma que tenha feito? Conte sua experiência nos comentários, estamos interessados na sua história.

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