Uma psicóloga decidiu contar por que estamos ensinando as crianças a não confiarem em si mesmas (e isso pode ser difícil de engolir)
Estava sentada em um café. Na mesa ao lado, havia uma família: o pai com o filho de uns 4 ou 5 anos e uma senhora ao lado, provavelmente a avó da criança. Tomavam chá e conversavam.
O menino queria tomar a bebida, mas estava muito quente. Ele tentou algumas vezes bebericar, mas sem sucesso. Voltou-se para os adultos: “Tá muito quente”. Os dois continuaram a conversar e não deram importância para o chamado. O garoto falou mais alto: “Tá muito quente”. A avó se virou, impaciente, e retrucou: “Não está nada quente, pare de reclamar”.
O pai encostou na xícara, tentando fazer alguma coisa, mas a senhora quis continuar a conversa e seguiu fazendo outras perguntas ao homem, deixando o garoto se resolver com o problema sozinho. A avó, então, ficou mais incomodada: “Chega de besteira! Beba logo! Não está nada quente e nós precisamos ir embora”, e voltou para o bate-papo. A criança se calou, pensou por alguns segundos, assoprou a bebida e deu um gole. Finalmente, todos se levantaram e foram em direção à saída. No caminho, a avó se virou e disse ao neto: “Se você se comportar assim de novo, não vamos mais te levar para lugar nenhum”.
Não sei quanto a você, mas eu queria dar uns tabefes naquela mulher. Bom, se pensarmos no lado daquela criança, o que ela aprendeu com isso:
- Que os problemas dela não são importantes; e ela mesma não tem grande importância.
- Que não é bom falar sobre os nossos problemas em voz alta.
- Que não se deve pedir ajuda: ou vão repreender ou ignorar. De qualquer forma, não mudará nada.
- Que não se pode confiar nos próprios sentimentos. Os outros que ditam o que ela pode ou não sentir em determinada situação.
- Que os familiares próximos podem virar as costas só por ela ter declarado que estava com algum problema (nesse caso, a bebida estava quente).
- Que o pai dela não irá se pronunciar e defendê-la nos momentos difíceis.
- Que a avó tem mais voz ativa que o pai. Essa imagem pode ser projetada para as futuras relações que essa criança terá com outras pessoas; e na forma como ela mesma se vê.
A lista pode continuar, mas acho que é suficiente para demonstrar o horror que eu presenciei. Toda essa cena durou uns 10 minutos. Não obstante, precisamos lembrar que outras variações da mesma atitude devem ocorrer também em casa, na comunicação entre os membros dessa família. Bastam algumas repetições, e as lições são assimiladas para a vida.
Muitos cresceram ouvindo coisas do tipo e se moldaram por conta de tal “educação”. Não estão acostumados a se ouvirem; a confiarem em si mesmos. Baseiam-se no que as pessoas à volta fazem e empurram as próprias necessidades para o canto mais distante. Como fazer diferente? Bom, vou explicar.
Quando me sinto mal em alguma situação ou durante alguma interação, isso significa apenas uma coisa: estou me sentindo mal. São as minhas emoções e elas devem ser consideradas. Eu preciso confiar nelas para me proteger de alguma forma. Isso é um ato de amor-próprio. Discorrer sobre o PORQUÊ de alguém estar me fazendo mal, colocando-me no lugar do outro e tentando entendê-lo não é minha obrigação. Não é meu trabalho ponderar se determinada pessoa teve uma infância difícil ou não e, por conta desses traumas, ela trata os outros com desrespeito. Não é minha responsabilidade avaliar as dificuldades e a complexidade dos sentimentos alheios.
A capacidade de se proteger e de definir os próprios limites é muito importante para a autoaceitação. Somente depois de aprender a nos respeitarmos, podemos começar a evoluir. Isso diz respeito à competência de olhar para uma situação através dos olhos de outra pessoa; de compreender seus motivos; de não deixar se abalar por algum comentário; de aceitar o outro; de perdoar. Ou de não perdoar. Após passar por essa trajetória, talvez mais de uma vez, podemos finalmente colher o fruto mais valioso — a virtude de não se importar.
Querem me xingar? Dou de ombros e penso: “Tudo bem, acontece”. A consequência de seguir tal comportamento é que passo a aceitar as pessoas como elas realmente são. Além disso, há também um sentimento mais profundo: entender que todos nós, por dentro, somos apenas crianças, que um dia cresceram e, de alguma forma, aprenderam a se ludibriar e a não se amar. Todos sofremos com isso em níveis diferentes. Por isso, não vale a pena expandir essa dor e tentar combater crueldade com crueldade.
Desde a infância, muitos são ensinados a não confiarem nos próprios sentimentos ao ouvirem coisas como: “Não faça isso, não é certo”. Crescem, muitas vezes, sem sequer ter a aptidão de reconhecer as próprias emoções. Admitir sentimentos negativos torna-se um tabu, cuja resposta frequentemente é a seguinte: “A culpa é sua”. Por isso, primeiro precisamos restaurar essa carência: rejeitar o sentimento de culpa, aprender a confiar nas nossas próprias emoções e, então, manifestá-las para o mundo e discutir abertamente sobre elas. Em seguida, praticar a arte de traçar nossas limitações e resguardá-las. Se preciso, com unhas e dentes.
Em um primeiro momento, poderá parecer agressividade. Mas é apenas uma falsa impressão. Os adeptos de tradições orientais, por exemplo, que têm os atributos de serem calmos e disciplinados, muitas vezes escondem dores emocionais que nem imaginamos, mas que irrompem dos seus olhos cansados e chorosos. Poderia dizer que eles talvez tenham pulado algumas etapas ao “apanhar o touro pelos chifres” e saltar alguns passos à frente. Não podemos nunca esquecer que tudo precisa ser feito na sua devida sequência: colocando a si mesmos em primeiro lugar.
O Incrível.club publica este texto com a permissão da autora Larisa Vertisheva