“Lutei a vida inteira por esse reconhecimento”, como a mãe do Emicida superou as dificuldades e virou escritora na terceira idade
Dona Jacira Rocha Oliveira, mãe do Evandro Fióti e do Emicida, gosta de tecer, bordar e cuidar de plantas. E de escrever. Essas atividades ela sempre fez como uma forma de terapia, para espantar pensamentos e sentimentos negativos e sentir paz. Mas também como sobrevivência. A vida da Dona Jacira, assim como a de muitos de nós, teve seus altos e baixos. E ela soube aproveitar cada um deles para se redescobrir, se reinventar e transformar não só a sua própria vida como a das pessoas que a cercam.
Dessa vez, o Incrível.club pede licença para fazer o papel da Dona Jacira de preservar e espalhar histórias, para contar a sua própria jornada de superação que inspira a tantas pessoas.
Conte-me um spoiler
A Dona Jacira não entende essas pessoas que não gostam de spoiler. Para ela, saber o final de uma história é o que vai fazê-la decidir se quer ler o livro ou não. “Me conta uma história de aventura, me conta um texto, me conta uma fofoca... Me conta uma coisa qualquer que faça sentido na vida, ah, eu vou atrás daquilo com a minha luneta de busca, eu vou”. Sendo assim, nós vamos dar um spoiler da própria história da Dona Jacira.
Depois de ser impedida de se expressar pela escrita, Dona Jacira enfrentou todas as dificuldades que se apresentaram, se redescobriu e lançou o seu próprio livro. Hoje é inspiração para muitos, principalmente jovens, que frequentam a sua casa para se inspirar e crescer como ela. Mas não pense que é só isso não! Para chegar nesse final, a Dona Jacira passou por muita coisa, tem muitas histórias para contar e lições para ensinar.
As origens da Dona Jacira já denunciavam que ela se tornaria uma contadora de histórias
Em várias culturas da África Ocidental existe um indivíduo chamado de Griô, que tem o papel de preservar e espalhar as histórias do seu povo. Dona Jacira seria uma Griote, no feminino, pois tomou para si essa função de contar as histórias que ensinam, guiam e inspiram as pessoas.
Ela também se declara descendente do povo Tupi e explica que seu nome significa “filha da lua”. Jacira também significa “Yaci-ira”, uma flecha que, uma vez atirada, não tem retorno. Suas origens, assim como seus tecidos, são uma colcha de retalhos, onde cada pedacinho de pano é uma cultura diferente: Bubi, Fula, Tupi, Camarões e filha de Dona Maria Aparecida do Jardim Ataliba Leonel.
A menina Jacira já se mostrava muito curiosa e criativa, além de demonstrar uma inteligência ímpar
Quando criança, a pequena Jacira era uma menina curiosa que adorava brincar no meio da natureza. Ela brincava com formigas, tatuzinhos, folhas e levou muitas picadas de abelhas que não estavam tão a fim de brincar com a Jacira. Até hoje a casa dela é cercada de plantas por todos os lados. No meio delas, uma plaquinha inspiradora: “Se não houver vento, reme”.
Na escola, com 6 anos de idade, a pequena Jacira sentia que as pessoas não faziam o mínimo de esforço para encaixá-la. Mesmo assim, era dona de uma sabedoria da vida que ninguém da sua idade possuía, e até já sabia ler e escrever. Um dia, na tradicional tarefa de plantar um feijão no algodão molhado, quem deu aula foi a pequena Jacira, explicando tudo o que aconteceria com aquele feijãozinho. Maravilhada, a professora a levou para a diretoria, dizendo que ela tinha de ir direto para o segundo ano.
Jacira encontrou suas primeiras dificuldades ainda na escola, com pessoas que não a compreendiam
A diretora não deu ouvidos à professora. Pelo contrário: muitas professoras não acreditavam que o que ela escrevia era feito por ela mesma. Ainda assim, Jacira teimava em escrever suas histórias, relatando tudo o que passava. Desacreditada, uma diretora sugeriu à mãe de Jacira, então com 10 anos, que não deixasse mais ela escrever, e que a colocasse para trabalhar em uma casa de família.
A pequena Jacira descobriu um jeito de não ter mais as professoras pegando no seu pé. Parou de escrever, de fato, mas passou a desenhar. Ela percebeu que, se parasse de tentar mostrar que já sabia muitas das coisas que elas tentavam ensinar às crianças, teria tempo para brincar de bolinha de gude, empinar pipa e jogar bola em paz.
Dona Jacira gostava tanto de mexer com plantas, que fez das dificuldades adubo e floresceu
A pequena Jacira assim cresceu, casou-se, teve quatro filhos — Katia, Katiane e os rappers e produtores Leandro, o Emicida, e Evandro Fióti — e ficou viúva. Para sustentá-los, trabalhou como empregada doméstica e feirante vendendo cocadas, por exemplo. Levava os quatro filhos para todos os lugares que ia, inclusive ao trabalho.
Esforçou-se para terminar os estudos e se formou técnica em enfermagem. Até conseguiu um emprego num hospital. Tudo o que ela conquistava, o fazia pelos filhos. Pois além da arte, era neles que ela encontrava conforto para sua vida. “Eu acredito que a poesia é uma forma de sobrevivência”. É quando ela escreve que coloca para fora de si os pensamentos negativos.
Como toda grande mulher, Dona Jacira tem uma chave do sucesso criativo, a “Hora de Poder”
Para ela, no meio de todos os problemas que passamos no nosso dia a dia, acontece a “Hora de Poder”. É o momento em que a Terra, que nos originou, se abre para falar apenas conosco. A “Hora de Poder” da Dona Jacira acontece entre às 3h e às 7h da manhã. Um dia, nesse horário, ela tinha acabado de chegar ao hospital e, em silêncio, começou a escrever. Escreveu e escreveu sem parar, muito emocionada.
Uma de suas amigas, uma enfermeira, pensando que ela estava triste, a interrompeu a fim de consolar a Dona Jacira. Ela parou de escrever para agradecer e dizer que estava bem, mas isso foi suficiente para quebrar a sua inspiração e simplesmente não conseguiu mais se lembrar do fim do texto. Por isso, aconselha para quem estiver na sua “Hora de Poder”, se for interrompido, não tenha dó e diga: “Arreda, que eu ’tô criando”.
A mãe criou os filhos para serem artistas, e os filhos “criaram” a nova mãe, também uma artista
Depois de tanta luta, Dona Jacira hoje se reconhece como a mulher forte e persistente que é. Ela tem consciência das lutas que enfrentou e dos frutos que colheu. E, com os filhos já crescidos e poetas, como ela, reconheceu nas palavras deles as suas própria lições. Jacira pensou: “Esse menino canta o que eu canto (...) Conheci os amigos dele e vi que eram minhas lutas”. E com tanta retribuição em forma de estímulo, Jacira conquistou uma grande realização: a publicação de um livro.
Depois de plantar várias árvores e ter quatro filhos, Dona Jacira completou o seu ciclo: escreveu um livro
Dona Jacira se reinventou através da cultura, dos estudos, da leitura e do autoconhecimento. Reuniu os textos que escreveu e publicou-os no seu primeiro livro, intitulado Café, que é uma autobiografia em forma de poesia. Ela comemora: “É uma sensação de reconhecimento. Tinha uma intuição de que isso iria acontecer, mas até então não tinha mais nada claro. Hoje não, agora é concreto. Tenho o livro, pessoas que já leram, que comentam e me sinto realizada”.
Como homenagem às lições de Dona Jacira, seus filhos criaram roupas inspiradas na sua vida
Lembra que falamos que, além de escrever, Dona Jacira gostava de costurar? Pois então, na SP Fashion Week de 2017, seus filhos Leandro e Evandro apresentaram uma coleção da sua grife, a Laboratório Fantasma, toda inspirada na história da família. Com destaque para esse casaco de retalhos que refletem toda a criatividade da matriarca. O LAB também comercializa produtos naturais, feitos artesanalmente pela própria Dona Jacira.
Hoje a casa de Dona Jacira é lugar de acolhimento e escuta de jovens da periferia, em busca da sua sabedoria
A casa de Dona Jacira é um refúgio no meio da cidade grande, onde ela ensina jardinagem, promove encontros com mulheres e recebe jovens, com o intuito de acabar com o isolamento das redes sociais. “Só as pessoas mais jovens conseguem entender que é bem melhor pensar na cidade maravilhosa, com as pessoas tendo esperança de se salvar, do que numa cidade que não existe mais”, Jacira pondera.
O que fazer com essa tal liberdade?
A contadora de histórias, em uma entrevista, deixou uma importante lição que serve a todos nós: “A gente precisa saber usar a liberdade que a gente tem. Você está livre hoje, você vai fazer o quê? Você pode escolher, você é livre. E a colheita vem depois da plantação”. Uma lição que vem de uma infância brincando com plantinhas e falando de feijões em algodões molhados e de uma vida colhendo tudo o que ela plantou e regou com amor e dedicação.
Lendo essa história, temos certeza de que você lembrou de alguém cheio de histórias para contar também. Conte-nos quem é a Dona Jacira que te inspira! Adoraríamos saber!