Como um pai surdo educou o filho bilíngue e o viu se tornar um autor e intérprete de Libras profissional
O vencedor do Oscar de Melhor Filme do ano, CODA ou No Ritmo do Coração, mostra o amadurecimento de uma adolescente ouvinte em uma família de surdos. É uma história tocante que nos torna conscientes do choque de cultura que existe em famílias assim.
Aqui no Brasil, temos também nossos CODAs (child of deaf adults ou seja, filho ou filha de adultos surdos), e um deles é o Fernando Lino. O Nando cresceu numa casa com um pai surdo e, dessa experiência, amadureceu e se tornou um intérprete de sucesso e autor de dois livros.
O Incrível.club convida você a conhecer a história de como a convivência com um pai surdo inspirou o amadurecimento do Nando como um pai de família e profissional consciente da inclusão. Confira!
Fernando teve uma criação bilíngue, tendo tanto Português quanto Libras como primeira língua durante toda a infância e juventude
O Nando é filho do Vicente e da Ângela, um pai surdo e uma mãe ouvinte, e tem três irmãos, ouvintes também — dois deles estão na foto abaixo. A família do Vicente aprendeu Libras naturalmente, a partir da convivência e da comunicação com o pai, tornando-se uma família bilíngue. Mais tarde, com bastante estudo, Nando percebeu que os sinais de Libras que ele havia aprendido poderiam ser aprofundados, com termos mais específicos e formais, mas ele já conhecia muito bem a língua ensinada pelo pai.
Além do pai, Nando ainda tem uma tia surda, Mônica. Como ele aprendeu Libras, a convivência com o pai e a tia sempre foi muito boa, pois a comunicação fluía. Anos depois, ele descobriu que existe um termo em inglês, CODA, que define pessoas que cresceram em uma família com ao menos um dos pais surdo. Desde então, Nando tem mantido contato com outros CODAs, com quem compartilha as suas experiências.
Como é viver no lar de uma pessoa surda? Pode ser bem diferente do que você imagina
Mas muitas pessoas podem pensar que a casa de um surdo é sempre silenciosa, mas não é isso que o Nando tem a dizer. Como o Vicente não ouve, ele não tem ideia do barulho que faz no dia a dia. Sendo assim, era comum que o pai acordasse bem cedo para trabalhar e começasse a bater portas, armários, panelas e outras coisas, acordando todos os ouvintes da casa. Os filhos se irritavam, implorando para ele fazer silêncio, mas respondia debochado “eu já acordei, acordem vocês também”.
Certo dia, Nando acordou com o barulho de um alarme de carro disparando e ficou imaginando, ainda sonolento, de quem seria. Depois de um tempo, como o alarme ainda estava tocando, ele percebeu que era do seu próprio automóvel. Levantou-se e saiu correndo pela casa para ver o que acontecera, apenas para encontrar o Vicente lavando o seu veículo tranquilamente, sem ouvir o alarme. Nando começou a agitar os braços, tentando chamar a atenção do pai e precisou explicar para ele como o alarme funcionava.
Mesmo sendo surdo, Vicente sempre estimulou que Nando continuasse a cantar e tocar seus instrumentos
Assim como a Ruby do filme No Ritmo do Coração, Nando sempre gostou de música. Gosta de tocar violão e cantar, além de tocar violino na igreja em que participa. Mas, diferentemente do longa, Vicente nunca questionou as suas escolhas nas atividades que envolvem o uso da fala ou instrumentos musicais. Pelo contrário, o pai parabenizou e estimulou o filho a continuar fazendo o que gosta.
Nando até acredita que o pai possa ter percebido as músicas que ele tocava e cantava, e explicou o porquê: “Referente ao canto e aos instrumentos, dependendo do ambiente, é possível que as pessoas com deficiência auditiva possam escutar esses sons por estarem em um decibéis mais acessíveis do que a fala oral”.
Anos atrás, quando Nando assistiu ao filme A Família Bélier, longa que inspirou o No Ritmo do Coração, ele quis repetir a cena em que o pai sente a música através das vibrações no peito da filha. Chamou o pai e pediu para ele colocar a mão em seu tórax, enquanto tocava o violino e cantava. “Foi uma experiência muito legal para mim, e ele afirmou que estava ’ouvindo’ sim a música”, explicou. “Porém, ele não deu a mesma importância porque música é muito mais significativa para ouvintes”.
Mesmo se comunicando por Libras durante toda a vida, Nando percebeu a importância de estudar a língua mais a fundo
Por ter aprendido Libras com seu pai e ter uma boa comunicação com ele, Nando achava que não precisaria estudar essa língua. Apenas em 2010, quando já tinha 22 anos, que um amigo intérprete conseguiu convencê-lo a matricular-se num curso. Foi então que ele percebeu a grande diferença entre a sua aprendizagem natural e o aprendizado formal. Isso abriu várias portas para Nando, inclusive na luta pela conquista de espaços pelos surdos, através da inclusão.
Ele não guardou esse conhecimento e essa nova visão do mundo para si. Chamou para uma conversa sua irmã, seus tios e tias e explicou as dificuldades que os surdos enfrentam num mundo em que poucas pessoas sabem se comunicar com eles. Depois dessa longa conversa, as relações entre eles também mudaram e se interessaram em estudar para atingir a fluência em Libras.
Convivendo com surdos em meio a uma multidão de ouvintes, Nando passou por situações cômicas e até constrangedoras
Nando passou a ser o intérprete da família: “Eu ia junto a bancos, médicos, na empresa onde eles trabalhavam, nas reuniões em família, no processo de separação dos meus tios surdos...”. Houve uma situação em que estava com o pai num banco, esperando pelo atendimento da gerência. Do nada, Vicente deu um espirro muito alto, que assustou o filho e as pessoas ao redor. Nando, envergonhado mas rindo, quis chamar a atenção do pai, mas ele respondeu em Libras: “Sou surdo, nem ligo”.
A cultura dos surdos, como Nando nos explicou, é totalmente baseada nas coisas que eles veem, e várias vezes apenas nisso, já que muitas vezes faltam maiores informações por não terem acesso aos sons. Um exemplo foi quando passou outra vergonha no consultório médico, que ele havia levado o pai por conta de uma dor na coluna. O médico perguntou se Vicente tinha alguma dor e ele respondeu que “não, minha saúde está ótima como sempre”, tudo isso com Nando mediando como intérprete.
Acontece que, para Vicente, naquele dia, ele realmente não estava com dor alguma, então respondeu com sinceridade: não estou com dores. Foi preciso Nando, envergonhado pelo mico, pedir licença ao médico e explicar que eles foram ali por causa “daquele dia, lembra? Que você reclamou de dor na coluna”. Como visto, é preciso conhecer como os surdos pensam e enxergam as questões do mundo para interpretá-los melhor. E isso Nando consegue, graças aos anos de convivência.
Outras situações engraçadas e até um pouco constrangedoras foram vividas pelos dois. Como quando um vizinho queria uma ferramenta emprestada e Vicente se recusava porque julgava que ele não cuidaria direito. Pai e filho iniciavam uma discussão, na frente do vizinho sem graça que não entendia nada. Ou quando Nando precisou explicar ao pai diabético que o açúcar do suco artificial não vai sair voando se ele apenas colocar mais água, e Vicente achou tão engraçado que riu até perder o fôlego.
Com toda essa bagagem adquirida com o pai, Nando percebeu que podia usar seus conhecimentos para melhorar a vida dos surdos
Além dessas histórias, Nando também percebeu que o pai não gostava muito quando ele levava amigos para casa. Vicente ficava visivelmente contrariado e até dizia para eles irem embora logo. Até que, um dia, Nando levou um amigo que sabia Libras e Vicente adorou a visita, sentou-se junto e participou da conversa com o filho e o colega. Foi aí que o Nando percebeu que o pai não tinha problemas com seus amigos, ele apenas queria fazer parte da conversa.
Sendo o intérprete da família, Nando era requisitado para acompanhar o pai e os tios em vários compromissos, e até mesmo traduzir mensagens de celular e e-mails do trabalho deles. Isso seria muito diferente se mais pessoas soubessem Libras, garantindo uma melhor comunicação com os surdos em suas vidas pessoais e profissionais. Ter percebido isso, as barreiras que seu pai e sua tia, por exemplo, enfrentavam no dia a dia, fez Nando tomar uma decisão para a sua vida profissional.
Nando abandonou a sua primeira escolha como profissão e abraçou as oportunidades como intérprete de Libras
Quando começou a estudar Libras, Nando estava no final da faculdade de Comércio Exterior, mas nunca chegou a exercer essa profissão. Assim que terminou o curso, começou a fazer interpretações como voluntário na igreja, para o seu pai e outros surdos da sua cidade natal, Itu, no interior São Paulo. Não demorou muito e ele conseguiu a primeira oportunidade como intérprete profissional, para um aluno surdo do curso de Direito em São Paulo. Era mais uma porta se abrindo para Nando.
Nando se mudou para São Paulo e conseguiu várias oportunidades como intérprete em escolas, faculdades, palestras, congressos, teatros, saraus, audiências na justiça, consultas médicas, e por aí vai. Ele também se especializou em ensinar técnicas de interpretação para pessoas que já sabem Libras e querem se profissionalizar. Tudo isso, sem abandonar seu trabalho voluntário como intérprete na igreja, seja em São Paulo ou em Itu, para onde sempre volta para visitar os seus pais.
Consciente das ricas experiências que viveu, Nando quis compartilhar o que aprendeu com muito mais pessoas, por isso decidiu escrever livros. Lançou, em 2015 As Mãos e a Boca, em que relata em forma de poesias como foi crescer numa família com um pai surdo e uma mãe e irmãos ouvintes. Também lançou em 2019 o livro infantil Mundo de Tales, no qual o protagonista é um menino surdo. Esse livro compõe, desde 2022, a curadoria de literatura surda do Sesc Paulista.
Mas não só na vida profissional que a Libras trouxe transformações para Nando
Em 2012, quando estudava pós-graduação em Tradução e Interpretação de Libras, Nando conheceu a também intérprete Fernanda. Para além da coincidência entre os seus nomes, os dois se deram muito bem e faziam todos os trabalhos juntos e se tornaram melhores amigos. “Nos tornamos confidentes, contávamos tudo um para o outro sem esconder nada, até que essa relação aumentou e nos apaixonamos”.
Os estudantes “Fe & Nando” evoluíram essa parceria para um namoro em 2015 e se casaram em 2017. Em 2022, a família aumentou com a chegada do Enzo, o primeiro filho do casal. Mesmo os três sendo ouvintes, já existem planos para o menino também aprender a língua que uniu o papai e a mamãe: “Queremos proporcionar uma vida bilíngue e multicultural para ele”.
Nando participa ativamente dos “três mundos” em que vive e sente-se grato pela educação que teve
Depois de ter adquirido a consciência dos percalços dos surdos numa sociedade de ouvintes, Nando se firmou profissionalmente como intérprete na 1ª Delegacia de Polícia da Pessoa Com Deficiência de São Paulo. Lá, ele atua junto a uma equipe de profissionais de várias áreas para atender aos surdos em suas demandas com a atenção e dignidade que eles merecem. E segue interpretando cultos na sua comunidade religiosa, que foi onde deu os primeiros passos como intérprete de Libras.
Além disso, ele mantém contato com os CODAs de todo o Brasil, com quem divide histórias e experiências similares às que vive com sua família. “É um terceiro lugar, um lugar que não é de surdos, não é de ouvintes, apenas de CODAs”, afirma, realizado. Quanto ao Vicente e à Ângela, ainda moram em Itu, orgulhosos de serem vovôs do Enzo e pais de um intérprete cheio de cultura, empatia e histórias na bagagem.
E Nando é igualmente orgulhoso pela educação que teve dos pais! “Eu sou muito grato por ter um pai surdo”, finaliza, “por ter herdado essa língua de sinais do jeitinho dele. Isso faz parte de quem eu sou, e é a maior herança que ele me deu”.
Muitas pessoas têm as suas dificuldades, e acabam tirando delas as lições de crescimento que as formam adultos melhores. O que você aprendeu das dificuldades que teve na sua infância?