Mamãe, na realidade apenas fingimos que somos idiotas

Psicologia
há 1 ano

Incrível.club ficou comovido com o post sobre pais e filhos criado pela blogueira Odonata Veter. E simplesmente não podemos deixar de compartilhar este texto com nossos leitores.

Uma semana atrás, pela primeira vez na minha vida, meu coração doeu. Eu fiquei terrivelmente assustada e corri para consultar o médico. A doutora, uma cardiologista muito gentil, entre outras coisas me disse que na minha idade eu tinha que criar filhos e não correr “essas maratonas”. E que, chegando ao limiar de 30 anos, era hora de entender que a vida não é feita só de emoções extremas e diversão sem fim, mas também de responsabilidades, cuidados de saúde e maturidade.

Nesse momento, senti medo e dor, então tudo o que se derramou e passou por mim me arrasou. Achei que era o fim, que nunca mais poderia voltar a correr, que havia cometido um monte de erros irreparáveis e que tudo o que aquela mulher dizia era a mais pura verdade e que eu vivo muito mal a minha vida.

Depois de alguns dias e alguns calmantes, meu coração e eu voltamos ao normal e fiquei surpresa com a minha reação a tudo que havia acontecido no consultório médico. Por que não perguntei, em primeiro lugar, por que diabos estávamos discutindo o fato de que eu pintei meu cabelo de rosa, mesmo que a “adolescência termine aos 16 anos, minha querida”; e por que eu comecei a me justificar e tentar demonstrar que as coisas não eram assim, que ela tinha me entendido mal, que na verdade eu sou uma boa menina, que eu tenho um emprego e também pratico esportes. Me elogie!

O que acontece é que minha mãe sempre me disse a mesma coisa. Ela também é médica e também é uma mulher maravilhosa da mesma idade. E costumava usar exatamente as mesmas palavras: sobre correr, sobre cabelo e sobre “crescer”. Havia algo em comum nelas, algo geracional.

Eu não poderia me justificar diante da minha cardiologista pela cor do meu cabelo e na frente da minha mãe por outra meia maratona, mas, em nome de toda a geração à qual pertenço, queria dizer algo aos nossos pais, mães, professores, às vezes (embora cada vez menos) superiores. Parece-me que ocorreu algum mal-entendido e só conheço uma maneira de resolver problemas de comunicação: falar. E, por alguma razão, nem sempre falamos um com o outro. Bem, então eu
vou começar.

Mãe, a questão é que na realidade nós apenas fingimos ser idiotas. Nos enchemos de brinquedos, compramos helicópteros e camisetas com o Mickey Mouse, assistimos a desenhos animados, nos reunimos com os amigos para jogar videogame e andar de roller. Mas isso não nos impede de ganhar dinheiro, tirar hipotecas, abrir negócios, escrever artigos de pesquisa e criar coisas novas. Jogamos a infância porque podemos, porque aprendemos que não é necessário ter uma cara séria para fazer coisas sérias. E agora fazemos coisas inteligentes, brincando de ser tolos.

Sim, há muitas coisas que não conhecemos e não sabemos como fazer, coisas que vocês, sim, sabiam e faziam. E é verdade que muitos de nós esquecemos como escrever com um lápis no papel. Às vezes não temos ideia de como usar o correio ou onde ir em uma clínica, não sabemos como comprar em uma loja algo que não está na prateleira, como ou com quem barganhar, não conhecemos nenhum trabalho de Shakespeare de cor, nos perdemos em instituições públicas e não sabemos como tratar um ataque cardíaco em condições domésticas. Quando vocês fazem tudo isso, ainda os olhamos como se tivessem nos mostrado um incrível milagre.

Mas a verdade é que podemos fazer muitas outras coisas: falamos muitas línguas, podemos obter qualquer informação e determinar sua qualidade e confiabilidade em questão de segundos. Podemos encontrar trabalho em qualquer lugar do mundo em poucas horas, inventamos pequenos servidores que, reunindo 5 dólares em todo o mundo, alguns anos mais tarde remodelam completamente a economia global, unimos o incombinável, nos restruturamos para os novos paradigmas em questão de dias e aprendemos a ser amigos de todo o planeta. Não é sobre quem é mais cool, se vocês ou nós, a questão é quais habilidades estão em demanda aqui e agora. Nós chamamos isso de challenge: o desafio que o tempo lança. E você tem que responder com algo a este desafio. E acontece que fazer contas de cabeça não é algo que o nosso “hoje” está nos pedindo.

Sim, estudamos de maneira diferente, apesar de que tanto vocês quanto nós recebemos educação de acordo com o mesmo programa. Na verdade, duvidamos muito que a educação signifique ensino e vice-versa. Vocês memorizaram quantidades monstruosas de informações. E isso é ótimo. Provavelmente foi importante. Mas agora não é. Agora cada um de nós carrega em nossos bolsos um objeto que tem acesso a toda a informação acumulada pela humanidade. Bem, isso é importante, vamos de novo. Toda. A informação. Acumulada. Pela humanidade. Ao longo de todos os milênios do processo histórico. Tentar memorizar pelo menos um milésimo de tudo isso é um caminho direto para a clínica psiquiátrica. Nós simplesmente não podemos fazer isso. É por isso que estudamos a estrutura. O esqueleto em que vamos colocar tudo que encontrarmos no Google. É assim que separamos o bom do insignificante. E ajudamos vocês com qualquer problema com computadores.

Temos mais ou menos claro “como tudo funciona” e, portanto, podemos encontrar qualitativa e rapidamente a informação exata que é necessária em um dado momento, avaliar sua qualidade e aplicá-la corretamente. É por isso que é inútil perguntar a qualquer especialista “nosso” sobre qualquer coisa, se ele não tiver um recurso com informações. Ele não se lembrará de absolutamente nada, exceto quando estiver ocupado com o que você está perguntando a ele. É por isso que parecemos totalmente desqualificados. Nós não somos. Temos um enfoque diferente para o uso da informação.

Nós ganhamos muito dinheiro. Muito mais que você na nossa idade. Isso está relacionado ao aumento geral do padrão de vida e ao fato de que amamos muito a liberdade, e a liberdade para nós está intimamente relacionada ao dinheiro. Ao mesmo tempo, o conforto pessoal não nos preocupa muito. E também não gostamos muito das coisas de nível: estamos brincando de ser crianças, lembra? Nós não nascemos para comprar carros ou casas de campo caras, para “não ser pior do que outros”. Talvez, compremos um console mais novo: ele terá mais jogos.

Há muitas coisas à nossa volta e são todas efêmeras: a China nos encheu de bugigangas por vários milhares de anos de antecedência. É por isso que tentamos gastar em vivências e não em coisas materiais. Nós vagamos pelos bares, parques de diversões, shows e milhares de outros lugares. É melhor você não saber quanto custa isso. E sim, ao mesmo tempo ainda temos canos com vazamentos no apartamento alugado, e nosso único meio de transporte é uma bicicleta. É por isso que parece que não sabemos como usar o dinheiro. Não, a maioria de nós pode comprar um carro. E fazer uma hipoteca, se necessário. Mas isso não é necessário. Por que precisamos de um apartamento próprio, se mudamos de emprego a cada 2 meses, e assim que tivermos pelo menos 300 dólares no bolso fugiremos para outro país?

Eu vou me debruçar sobre isso em detalhes. Nós somos móveis. Nós somos muito móveis. Procuramos ativamente o que gostamos e, portanto, sem hesitar por sequer um segundo, mudamos de emprego, cidades, países, amantes. Vimos como a internet chegou às mãos de cada um de nós. O que eu digo que vimos, transformamos isso no que é agora, inventamos Facebooks, WhatsApps e Couchsurfings. Estamos constantemente falando bobagens com amigos da Austrália, Canadá e Kuwait, mas ao mesmo tempo não temos ideia de como se chamam nossos vizinhos.

Temos uma percepção ligeiramente diferente do espaço: para nós, o “lar” é o planeta inteiro e completo. “Em casa” é onde o entendem. É por isso que, quando você pede cigarros aos quenianos em um subúrbio de Paris, está “em casa”, aí estão os “nossos” garotos com os quais podemos conversar sobre livros, garotas, garotos, filmes. Por outro lado, nossos vizinhos não são “de casa”, eles assistem a programas chatos e cozinham com maionese, aí é outro planeta. Por isso, para eles parecemos pouco sociáveis, fechados e frios.

Por causa dessa mobilidade geral e à natureza efêmera de tudo o que nos rodeia, muitos de nós escolhemos a estratégia de buscar algo que seja o mais confortável possível para nós mesmos desde o início, em vez de refinar alguma coisa até que ela se adapte a nós. Isso tem suas vantagens e desvantagens. Nós tentamos não entrar em algo inicialmente morto, mas também rejeitamos muitas coisas boas. Nós simplesmente temos mais opções. Provavelmente por isso parecemos frívolos para vocês.

Achamos que responsabilidade é isso: entender exatamente o que precisamos, ir e conseguir, sem prejudicar outros ao longo do caminho. Fazer algo só porque “temos que fazer” em nosso mundo é considerado irresponsável e não uma proeza. É por isso que casamos tão tarde e relutamos tanto em fazê-lo. Consideramos que só é aceitável quando você tem certeza do que quer e que tudo
é muito sério. A opção de ter filhos e depois pensar se os queríamos parece loucura. Nós não queremos formar uma família não porque somos irresponsáveis, mas vice-versa. É porque somos muito, muito responsáveis.

Claro, existem pessoas diferentes entre nós, com diferentes conteúdos no crânio. E há muitos que compartilham totalmente a visão de mundo de vocês: sobre educação e trabalho em um só lugar, sobre “saber de cor” e sobre ter filhos cedo, e sobre muitas outras coisas. Normalmente, eles vivem com vocês. E não podem se realizar no novo mundo, mas continuam a reclamar do seu pequeno salário e do mau governo, mas sem se levantar do sofá. Por quê? Não porque a configuração de vocês seja ruim, mas porque é de vocês. Funcionava na sua época, esculpia suas vidas. E se seus filhos são tão obedientes que aos 30 anos eles repetem palavra por palavra, tudo que vocês dizem significa que eles não estão tentando viver suas próprias vidas, não inventam seus paradigmas e, por alguma razão, são inertes e pouco ambiciosos. E se dissermos isso em outras palavras: eles são simplesmente muito preguiçosos para pensar e viver. E o nosso tempo cospe esse tipo de gente.

E como se não bastasse, é verdade que não temos 15 anos, e o mais assustador não é que somos adultos, mas que os adultos somos nós. E estamos construindo este mundo de tal maneira que possamos nos sentir confortáveis nele. Com Facebook, com Uber, com viagens intermináveis entre países, com projetos internacionais, com X-boxes e com a regra “não leve nada a sério”.

Criamos empregos e os preenchemos. Estamos remontando o sistema educacional e tentando reorganizar tudo. Nós fazemos o presente e despejamos o concreto na base de algo futuro. Assim, como nós somos. Com cabelo rosa. E usando uma camiseta com o Batman.

E sim, sabemos o que fazemos.

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