A história da cientista que evitou uma enorme tragédia

Mulher
há 1 ano

Esta história parece um roteiro de filme, mas, embora seja difícil de acreditar, realmente aconteceu. A protagonista desta façanha, Frances O. Kelsey, é uma cientista canadense-americana, que conseguiu resistir à pressão de uma corporação farmacêutica e salvou milhares de crianças da deficiência física. Além de sua prova de coragem, ela nos lembra até que ponto podem chegar as consequências de nossas decisões.

No Incrível.club acreditamos que algumas histórias são tão sensacionais que precisam ser sempre lembradas para que a humanidade não repita os mesmos erros.

A vida de Frances antes do escândalo

Frances sonhava em se tornar cientista desde a infância (o que não era fácil para uma mulher naquela época) e, aos 21 anos, se formou em farmacologia.

Em 1960, ela foi contratada pela Food and Drug Admnistration, a FDA (a agência do governo dos Estados Unidos responsável pela regulamentação de alimentos, medicamentos, cosméticos, etc.), e uma de suas primeiras missões foi pesquisar uma substância chamada talidomida, um tranquilizante prescrito a gestantes que já era comercializado em vários países e seria lançado nos EUA.

A pesquisadora sugeriu que, antes da liberação no mercado americano, fossem feitos mais estudos sobre os riscos da droga, como mostraremos a seguir.

Sobre a talidomida

A talidomida foi sintetizada pela primeira vez em meados do século XX, no curso de uma pesquisa da empresa Chemie Grünenthal, que produzia antibióticos.

  • Mesmo no caso de uma overdose, a talidomida não matava os animais usados como cobaias. A partir disso, chegou-se à conclusão de que o medicamento era seguro e o fabricante enviou amostras gratuitas a médicos da Alemanha e Suíça.
  • A droga, como dissemos, tinha um efeito sedativo significativo (calmante).

Um sedativo inofensivo e inócuo que, como observado posteriormente, também aliviava a insônia e o enjoo matinal. Parecia um sonho se tornando realidade! Sob diferentes nomes (mais de 37!), a talidomida começou a ser vendida em 46 países da Europa, Escandinávia, Ásia, África e América do Sul. Um ano depois, foi lançada uma campanha publicitária em grande escala dizendo ser “a melhor e mais segura cura para mulheres grávidas e lactantes” e isso apesar do fato de que nem o fabricante nem os distribuidores terem pesquisado os efeitos do produto em fetos.

Os poucos relatos que existiam sobre os efeitos colaterais desse medicamento (por exemplo, neurite) foram negados e silenciados.

O que aconteceu em 1960?

“Distaval (talidomida) não é um barbitúrico ou um sedativo, também funciona como pílula para dormir. É um analgésico seguro que fornece sono saudável”.

Em setembro de 1960, a talidomida chegou aos Estados Unidos. A empresa Richardson-Merrell apresentou-a para ser examinada na FDA, sob o nome de Kevadon.

A aprovação parecia apenas uma formalidade. No entanto, Frances rejeitou o pedido e surpreendeu a todos, alegando, como dissemos, que eram necessários mais estudos.

Qual foi o motivo de preocupação da cientista?

  • Os estudos de segurança da droga produziram resultados estranhos e foi observada ausência absoluta de toxicidade. Mas e se os corpos dos animais usados no experimento simplesmente não tivessem conseguido absorver a droga? Ninguém havia verificado essa possibilidade. Ao contrário, quando o primeiro experimento mostrou que as cobaias quase não se acalmavam ao tomar talidomida, os cientistas mudaram as condições do teste, para obter o resultado esperado. O desejo de lançar rapidamente o medicamento no mercado era muito forte. No entanto, Frances considerou inadequadas as evidências de segurança.
  • A Richardson-Merrell, empresa que produziria o medicamento, estava ciente do risco do desenvolvimento de neurite com o uso desse medicamento, mas não mencionou esse fato no relatório entregue à FDA. Em fevereiro de 1961, houve mais relatos desse tipo.
  • Não foram realizados testes sobre o efeito do medicamento em fetos em desenvolvimento, apesar de, naquela época, já saberem da permeabilidade da barreira placentária. Frances resolveu avaliar alguns indícios de que a talidomida causava paralisia dos nervos periféricos e supôs que os danos aos embriões poderiam ser ainda maiores.

Ela não deu o braço a torcer

Frances solicitou mais informações e, como resultado, o conflito começou. Ela recebia respostas do fabricante nos EUA, a Merrell, esperava 60 dias e fazia novas solicitações. Ela foi pressionada, tentaram manipulá-la através de seus chefes, foi repreendida por sua suposta incompetência, além de se queixarem de sua burocracia. Frances insistia que a evidência de segurança não era conclusiva e acreditava que a Merrell precisava fazer uma pesquisa mais bem feita.

“Na Richardson-Merrell estavam muito indignados”, dizia Frances. “Eles ficaram desapontados porque o Natal é época alta de uso de sedativos e soníferos. Continuaram me chamando e me visitando dizendo: Queremos ver esta droga no mercado antes de dezembro, porque esse é o momento de aumento de vendas”.

Mas ela se manteve firme até o final de 1961, quando os cientistas da Alemanha e da Austrália encontraram uma ligação entre talidomida e numerosos casos de malformações em crianças nascidas depois de suas mães ingerirem a droga durante a gravidez. Somente sob pressão da imprensa, a empresa Chemie Grünenthal (que havia desenvolvido a droga primeiro) começou a retirar o medicamento do mercado, notificando o sucedido aos seus sócios americanos.

Qual foi o custo de tal decisão para Frances?

Para avaliar como foi difícil para esta mulher tomar tal decisão, é necessário considerar vários fatos.

  • Naquela época, a talidomida já era vendida em mais de 40 países. Uma campanha de marketing agressiva foi realizada. Parecia que a permissão para a venda nos Estados Unidos era apenas uma formalidade.
  • A exigência das leis americanas para aprovar o produto era a segurança da medicação. Além disso, já tinham sido realizados testes: a Richardson-Merrell conseguiu distribuir mais de 2,5 milhões de comprimidos usando terapeutas e a maioria dos médicos a achou eficaz e útil, o que foi confirmado em seus relatórios. Nos depósitos das farmácias já havia toneladas do medicamento “Kevadon” prontas para serem vendidas.
  • Naquela época, Frances trabalhava na FDA há cerca de um mês, e essa foi uma de suas primeiras tarefas. Dá para imaginar o quanto custou para ela suportar inúmeras acusações de incompetência. A pressão foi enorme.

O que aconteceu depois disso?

  • Em 8 de agosto de 1962, o presidente John F. Kennedy entregou a Frances o prêmio Outstanding Civil Service Award, o mais alto prêmio não militar dos Estados Unidos. Ela se tornou a segunda mulher na história a receber tal distinção.
  • A tragédia da talidomida forçou muitos países a reverem e a endurecer sua política de licenciamento para muitos medicamentos. Por exemplo, foram acrescentados requisitos para fornecer evidências da eficácia de um medicamento e um monitoramento cuidadoso foi implementado tanto para os pacientes quanto para os médicos.
  • No total, de acordo com estimativas aproximadas, nos 6 anos em que a droga esteve no mercado, aproximadamente 12 mil crianças nasceram com anormalidades por causa do “inofensivo calmante” que suas mães tomaram. Cerca de 40% delas morreram antes do primeiro aniversário. Para entender como a vida foi difícil para os sobreviventes, basta olhar para as fotos das vítimas mais famosas: a estrela de um documentário alemão, Niko von Glazov, e o baixo-barítono da Alemanha Thomas Quasthoff.
  • A Chemie Grünenthal e seus sócios foram processados por vítimas em vários países. As primeiras acusações começaram a chegar em 1961, mas os processos duraram décadas. Na maioria dos casos, os resultados foram pagos em compensação às famílias das vítimas e foram criados fundos especiais de ajuda.
  • Frances O. Kelsey trabalhou durante a maior parte de sua longa vida. Ela se aposentou aos 90 anos e retornou ao seu país natal, Canadá. Além do prêmio recebido em 1962, ganhou muitos outros (incluindo um que tinha seu nome, destinado ao pessoal da FDA). Frances morreu em agosto de 2015, aos 101 anos, menos de 24 horas depois de receber a Ordem do Canadá das mãos da vice-governadora de Ontário.
  • Mas a talidomida, curiosamente, “voltou à ação” no final da década de 1990, quando se mostrou eficaz no tratamento de doenças graves, como a lepra e alguns tumores malignos insensíveis à quimioterapia. Claro, agora é prescrita sob o mais estrito controle e somente quando a mulher não está grávida.

Você já teve de tomar alguma decisão muito difícil em sua vida? Alguém te pressionou para fizesse o oposto? Como isso aconteceu? Conte-nos na seção de comentários abaixo.

Imagem de capa Wikimedia

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