Um diretor de cinema se arrisca para filmar a vida real na Coreia do Norte

Arte
há 5 anos

Vitaly Mansky é um cineasta e documentarista russo que há muito tempo se interessa pela vida na Coreia do Norte. Assim como muitas outras pessoas, ele se surpreende com o fato de que hoje em dia é possível existir um Estado parecido com o que vemos em 1984, a distopia criada pelo escritor George Orwell.

Um dia, Vitaly conseguiu conhecer alguns funcionários da República Popular Democrática da Coreia. Após algum tempo, eles se ofereceram para trabalhar em um filme. Claro que Vitaly aceitou, não para mostrar a visão do governo, e sim para entender como o país mais fechado do mundo é de verdade.

O Incrível.club ficou interessado na história do filme, que resultou no documentário Sob o Sol.

O governo da Coreia do Norte queria fazer um filme para mostrar ao mundo a imagem de uma família feliz. Eles prepararam um roteiro sobre uma menina de 8 anos de Piongyang que se preparava para o Dia do Sol, uma festa em homenagem ao aniversário de Kim Il-sung. As autoridades deram o roteiro a Vitaly Mansky e o cercaram de pessoas que verificariam o material do filme diariamente.

O personagem principal de Sob o Sol foi dado à pequena Zi-Min. Ela e seus pais também receberam o roteiro.

A partir de então, todos começaram a interpretar um verdadeiro espetáculo de alegria na frente do diretor. Os personagens principais foram levados de um apartamento de um quarto próximo à estação de trem para uma casa luxuosa no centro da capital. Na realidade, a casa era apenas um cenário construído sobre uma superfície de cimento. Os armários estavam vazios, ninguém usava o banheiro e a casa não tinha nem mesmo uma entrada principal.

De jornalista na vida real, o pai passou a ser, no filme, um engenheiro exemplar. Sua esposa não era mais a funcionária de uma cafeteria; ela passou a trabalhar (segundo a história) em uma fábrica de leite de soja. Até mesmo as fotografias familiares foram tiradas sobre um fundo falso. Mas o exagero não parou por aí. “Todos os habitantes de Piongyang são parte de uma exibição. Por exemplo, para manter a grama verde, todos os dias, às 6h da manhã e após o trabalho, são vistas pessoas agachadas limpando o chão”, comenta Vitaly.

Se o plano do governo tivesse funcionado, o documentário teria sido uma ótima propaganda. Mas o diretor russo tinha uma ideia diferente...

Além das imagens gravadas segundo o roteiro, o operador filmava muito mais. Tudo que era falso foi registrado. Inclusive o que acontecia do lado de fora do apartamento e que era possível ver pela janela (a equipe não podia sair da casa sem supervisão). Todo dia, o operador de câmera reclamava de problemas no estômago e ia ao banheiro copiar secretamente o material. O diretor e sua equipe estavam sempre em estado de tensão. Eles escondiam cenas não oficiais e entendiam que, se fossem descobertos, sofreriam trágicas consequências.

Um jovem americano, por exemplo, foi condenado a 20 anos de prisão por tentar tirar do país um cartaz com a imagem do líder. Contudo, ninguém suspeitou de Vitaly. Finalmente, as cenas, que totalizavam 26 minutos, e os comentários em forma de crítica do diretor se transformaram em um documentário que era justamente o que o governo não queria: uma antipropaganda.

Vitaly confessou que, após a sua viagem para a Coreia do Norte, ficou com mais perguntas do que antes de gravar o filme. “Eu tinha uma ideia sobre a Coreia do Norte e pensava que apenas registraria tudo na tela. Após alguns meses, pude confirmar que não entendo nada sobre como funciona a vida naquele país”.

O que mais surpreendeu o diretor foi que as pessoas estão anestesiadas. Elas simplesmente não sabem que podem viver de outra forma. “Eu pensava que aquele era um sistema de terror e repressão, e que todos compreendiam isso. Uma vez, falei com um domador de tigres. Ele me explicou que quando um desses felinos é destinado ao circo, desde o primeiro dia é treinado para não se sentir como um tigre normal. Ou seja, ele não pode saber que animal é de verdade. Assim, cresce, cria garras, dentes, bigodes, ruge e salta, mas não tem ideia de que é um tigre. O mesmo acontece no filme Sob o Sol. Mas com pessoas”.

Confira alguns dados sobre a Coreia do Norte que o diretor sempre comenta em suas entrevistas:

  • Além da família retratada no filme, Vitaly não viu nenhum outro pai ou mãe passeando na rua com seus filhos.
  • Alguns trabalhadores vivem nas próprias fábricas e algumas crianças passam a noite na escola.
  • Os homens prestam serviço militar por 10 anos e têm autorização para ficar com suas famílias durante poucos dias, durante o Festival das Flores. Além disso, eles não podem ficar sozinhos com seus familiares. Sempre devem aparecer em público.
  • As pessoas levam flores artificiais às estátuas dos líderes.
  • Os estrangeiros não podem andar de metrô. O diretor foi autorizado a cruzar apenas duas estações para filmar uma cena necessária. O tempo não foi suficiente e as autoridades propuseram que ele fosse para outro vagão, na direção contrária. Quando Vitaly disse que não poderia gravar a mesma cena com outros passageiros, todas as pessoas tiveram de passar para o outro vagão. Os passageiros se levantaram rapidamente, foram ao outro ’carro’ e se sentaram em lugares equivalentes. “Para mim, aquilo foi muito impactante. Até hoje parece que foi um sonho que vivi”, lembra o diretor.
  • Na televisão local não há notícias ou anúncios publicitários. Existem apenas 2 canais e o dia todo são transmitidas entrevistas com os líderes e a filosofia do governo Juche.
  • Os jornais têm 3 partes: na primeira página sempre há uma grande foto do líder. No resto, fotos menores de outros dirigentes e suas conquistas. No final, em letras pequenas, as publicações tratam dos acontecimentos mundiais, catástrofes, greves e acidentes aéreos.
  • Nunca houve um beijo em um filme da Coreia do Norte.

“No país, há pessoas que vivem da mesma maneira que seus pais e avós. Elas não têm nenhum tipo de informação e não sabem que a vida pode ser diferente. Elas nem mesmo têm acesso à Internet. Acredito que sequer tenham medo. O mais horrível é que estejam em um nível além do medo”, resume Vitally.

O filme Sob o Sol não é fácil de assistir. Ele traz imagens fortes e uma realidade bastante complexa e preocupante. Você acha que está pronto para dar uma olhada?

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